À luz
da sua vela, a tia Npot vai iluminando a sua vida e a das famílias à sua volta.
Vende carvão durante o dia. À noite faz cuscuz e vende mancara à beira da
estrada, no chamado beco. É a mãe que não tem filhos e que já não os pode ter.
A idade pesa-lhe nas coxas. Tia Npot é surda, mas todos os dias ouve a
necessidade e a luta pela sobrevivência a bater-lhe à porta.
Atrás da sua porta, que não é porta, vive no limiar da pobreza extrema. Mas do Estado não espera qualquer apoio que possa melhorar, nem que fosse um pouco, a sua vida. Tal como a maioria das mulheres guineenses batalhadoras, a tia Npot sentiu na pele a ausência do Estado. Nunca recebeu apoio social. Nunca sentiu uma preocupação, um querer saber, um carinho por parte da sua pátria.
Dorme nos recantos mais escuros numa casa coberta de palha, sem luz, sem água canalizada e em precárias condições físicas no bairro de Cuntum-Madina, em Bissau. A sua sala não tem televisão moderna. Mas tem utilidade. Serve para armazenar o sustento. Os sacos de carvão. E serve de dormitório para patos e galinhas, seus companheiros.
No
quarto, tia Npot tem panelas, bindi di cuscus e um colchão feito de palha. Uma
relva sem alma colocada num cantinho no chão. Um quarto escuro, sem janela nem
porta, que cheira a humidade. É uma espécie de terra batida - só areia por
dentro. Mesmo assim, quando entra, tia Npot deixa os chinelos à entrada da
porta principal.
A
cobertura da casa, por ser velha, deixa entrar a chuva. Tigelas e baldes servem
de remendo ao que não tem conserto. Já perdeu a conta às noites que passou em
branco por chover intensamente e sem parar. Não sabe onde colocar o colchão.
Está tudo molhado, parece que em casa é pior que na rua.
Npot acorda às cinco da manhã para preparar o seu longo dia. Vai dormir à uma de madrugada. É a rotina normal de uma mulher que não conhece descanso aos domingos. A fome não descansa e nunca dorme. Enquanto há quem espere pelo final do mês para receber o salário - algo que nunca experimentou -, Npot odeia o fim do mês. A sua renda de casa custa 8 mil francos. Nunca se interessou por pedir recibo de pagamento, já que nem ler sabe. Conhece apenas os números para contar os rendimentos e calcular a soma para pagar ao senhorio a renda mensal.
Muitas
vezes, eu no meu carro e ela caminhando, cruzamos os nossos caminhos à entrada
da mesma rua. Vejo-a sempre a carregar à cabeça. Leva mais de cinco quilos, deduzo. Fogareiro, bindi e tudo o que lhe permita ganhar
algum dinheiro por dia - às vezes quinhentos francos. Dinheiro que guarda
cuidadosamente na ponta de panos, num nó que faz propositadamente.
Mesmo
com a testa sofrida, a roupa a pingar de calor e os chinelos que se remendam a
toda hora, tira sempre um tempinho para saudar e cumprimentar as pessoas. Nunca
aceitou a minha boleia, quando lhe digo: "Tia no bai pan n´lebau, sol
noti". Reage sempre da mesma forma. "Nha fidju ntchiga dja, bai
diritu". E lá vai ela, num andar rápido. Talvez porque começa o dia sempre
em desvantagem, correndo contra o relógio e contra o prejuízo que já é certo.
Amanhã
nunca se sabe. Uma pasta dentífrica é um luxo? Ou sobra carvão para esfregar os
dentes ao nascer do sol? E o país? Como estará amanhã? Negro de novo? Ou há esperança
numa nação de todos e para todos?
Por várias vezes, do seu pequeno lucro tira uns 200 francos para oferecer aos jovens que andam de peditório em peditório para a sua equipa de futebol ou para comprar warga nas bancadas de Djumbai.
Da política, a tia Npot só conhece o PAIGC de
Nino Vieira e o PRS de Kumba Yala, antigos presentes dos respetivos partidos e
ex-chefes de Estado guineenses. Ao
contrário dos políticos, serve-se de si mesma para ter uma vida digna e
honesta. Votou uma única vez na vida, nas eleições de 1994, as primeiras
eleições livres na história da democracia do país. Ainda tem o seu cartão de eleitor novinho, pensando que fosse um único
documento que o Estado se dignou legar a alguém.
Ela é
umas das milhares de guineenses invisíveis aos olhos do Estado. É uma
indefinição. Devido à patrulha que as forças de segurança fazem nos bairros à
noite para tentar travar os assaltos à mão armada, Npot foi à minha casa ao
final de mais um dia de trabalho.
"Filho,
assisti a uma correria e gritaria na feira esta noite. Por que é que os
militares estão a pedir documentos?", perguntou, com um balde na cabeça
cheio de balas, da sua armada de luta contra a fome. Mas ela tem. É o cartão de eleitor de 1994. Ainda tem validade? Ou melhor, será
que um dia valerá alguma coisa?
Npot
não sabe se chegou a ter bilhete de identidade. Não se lembra. Ou seja, Npot
vive à margem do Estado e é invisível para o Governo. Um dia disse-me: "Filho, ajuda-nos por favor... já estamos cansados dessa
situação. Dizem que tu trabalhas na rádio. Então, diga-lhes (aos governantes)
que estamos a sofrer e não temos nada nem para comer. Que façam algo por nós
(povo)". Nem sequer ouviu a minha resposta: foi-se de imediato.
Quando
está doente, diz-se que faz cura tradicional apostando nos remédios de terra
com folhas de árvores, raízes, pedaços de troncos de madeiras, entre outros,
que muitos acreditam serem eficazes para combater doenças sem tomar
comprimidos. No caso da tia Npot, ela não vai ao hospital do Estado porque não
tem dinheiro. Se nem cem francos tem para pagar toca-toca, onde terá dinheiro
para pagar a entrada no hospital, comprar luvas, seringas, soro, medicamentos e
mais e mais e mais? Por isso, prefere ficar em casa e tentar a sorte com o que
tem.
Não
conhece Eneida Marta, Karyna Gomes ou Ammy Indjai, mas sabe de cor as músicas
de Dulce Neves no histórico grupo musical Super Mama Djombo. Não tem tempo para
ouvir noticiários. Não conhece nenhum ministro. Aliás, ainda não sabia que há
carros com ar condicionado. Foi uma admiração grande e surpreendente ver e
sentir um carro a "refrescar-se".
Ela não é de muita conversa, até porque não funcionam bem os ouvidos de uma mulher que se conforma com o que tem e luta dia e noite para andar de cabeça erguida na nossa sociedade. No dia de Natal sempre vende mais na rua, sobretudo na noite da ceia: está-se sempre a recarregar munições para a dura batalha do dia 25 de Dezembro. Um bom dia para elevar o lucro do dia-a-dia.
Na
sexta-feira passada, por volta das 00:30, a tia Npot deu-me os primeiros sinais
de desespero com a sua vida de sacrifício em sacrifício. Sem sossego. Nesse
dia, cruzámo-nos mais tarde do que habitual, eu a pé e ela de rastos, muito
embriagada. Era evidente que o efeito do álcool tomou de assalto a força que a
movia todos os dias. Soltei lágrimas sem ela se dar conta. Passados dois dias,
comunicaram-se a sua morte. Foi encontrada sem vida na sua casa, deitada ao pé
do seu saco de carvão. Entrei em choque. Ninguém conhece a sua família. A tia
Npot, que aparentava 65 anos, sempre viveu sozinha. Nunca ficou a dever a renda
de casa onde morava, nem à Câmara Municipal de Bissau pelo espaço que ocupava
no mercado.
O corpo
foi levado para a sua aldeia natal no interior do país, graças ao dinheiro das
suas poupanças encontrado na sua mala de madeira. Que tenha um cantinho para descansar em paz nos céus. Mais de metade das mulheres guineenses vivem, em situação de pobreza extrema,
ainda que lutem diariamente para garantir o sustento da família em casa.
A
questão que se coloca é: será que vamos
aceitar uma economia em que apenas alguns se dão espectacularmente bem?
A ideia
partilhada pelo meu pai (um verdadeiro combatente da liberdade da pátria) é que
este país será melhor quando todos tiverem as mesmas oportunidades, todos tiverem
a sua fatia justa, todos seguirem as mesmas regras. Razão pela qual deu toda a
sua juventude para a libertação dos povos nas mãos do jugo colonial para que
este país fosse um santo lugar para os seus filhos desfrutarem das riquezas
desta fatia de terra.
Nasci,
cresci e assisti o meu pai a morrer por não aguentar mais os reflexos das
torturas a que foram submetidos nas prisões de Tarafal e Djiu di Galinha.
Aceitou se sacrificar, tal como muitos combatentes, para que possamos levar em
avante a difícil tarefa de construir uma nação próspera que sirva todos os seus
filhos. Não só burgueses, elites, ou apenas uma geração.
Nós, o
povo, entendemos que o nosso país não pode ter êxito quando uns poucos estão
muito bem e um número cada vez maior não está. Acreditamos que a prosperidade
da Guiné-Bissau deve repousar sobre os ombros largos de uma crescente classe
mais desfavorecida e vulnerável.
À tia
Npot nunca foi dada a oportunidade de provar o sabor da propriedade do seu país
ou mesmo de aprender a ler e a escrever o seu nome para poder conhecer os seus
direitos e deveres, exigindo que o Estado cumpra a sua tarefa de levar avante a
nobre jornada iniciada nas matas de Boé em 1973. Tinha o dom precioso de saber
lidar com os números para fazer contas ao seu dinheiro, que ganhava a
conta-gotas, e saber geri-lo. Saliente-se que até ao final desta década, dois
em cada três postos de trabalho irão exigir alguma formação superior - dois em
cada três. E, no entanto, ainda vivemos num país onde muitos guineenses
brilhantes e batalhadores não podem conseguir a formação que merecem. Não é
justo para eles e certamente também não é inteligente para o nosso futuro.
Sim, vale a pena contar a
história de tia Npot.
Ficção? Metáfora? Ou
realidade?
Ela ilustra o exemplo da bravura da mulher guineense. Dos sacrifícios que faz para sustentar a família. Ela contrasta com a história de outras mulheres que não sabem o que é dormir com chuva em casa. E quando estamos a celebrar os 42 anos da independência…
A
história desta mulher valente podia ser a sua, a da sua mãe ou de algum
parente. Então, faça algo sério e digno para o desenvolvimento da Guiné-Bissau,
salvando vidas e tirando da pobreza milhares e milhares de irmãos guineenses.
Pense mil vezes antes de colocar os seus interesses pessoais ou partidárias
acima dos da nação! A Guiné sempre em primeiro lugar, não se esqueça.
Não
fique parado a ver pessoas a passar fome, a morrer de doenças fáceis de curar.
Faça algo para que o seu irmão tenha uma boa educação, saúde, emprego, vida
condigna, um bom professor. E faça algo pela sua terra natal. Pode até ter
tripla nacionalidade, mas nunca deixará de ser um nativo da Guiné-Bissau. Faça
algo e faça agora!
Que Deus abençoe a Guiné e
que Allah abençoe os guineenses!
Por:
Braima Darame (03.11.2015)
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