Intelectual italiano, romancista e filósofo, autor de "O pêndulo de Foucault" e "O Nome da Rosa" morreu em 19 de fevereiro, aos 84 anos; 'O fascismo eterno ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis', diz Eco
A
Revista Samuel reproduz o texto de Umberto Eco Ur-Fascismo, produzido
originalmente para uma conferência proferida na Universidade Columbia, em abril
de 1995, numa celebração da liberação da Europa:
Em 1942, com a idade de dez anos, ganhei o prêmio nos Ludi
Juveniles (um concurso com livre participação obrigatória para jovens
fascistas italianos — o que vale dizer, para todos os jovens italianos). Tinha
trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema: “Devemos morrer pela
glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?” Minha resposta
foi afirmativa. Eu era um garoto esperto.
Depois, em 1943, descobri o significado da palavra “liberdade”. Contarei
esta história no fim do meu discurso. Naquele momento, “liberdade” ainda não
significava “liberação”.
Passei dois dos meus primeiros anos entre SS, fascistas e resistentes, que
disparavam uns nos outros, e aprendi a esquivar-me das balas. Não foi mal
exercício.
(…)
1-A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da
tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Não somente foi típico
do pensamento contra reformista católico depois da Revolução Francesa, mas
nasceu no final da idade helenística como uma reação ao racionalismo grego
clássico.
Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas (todas aceitas com
indulgência pelo Panteon romano) começaram a sonhar com uma revelação recebida
na aurora da história humana. Essa revelação permaneceu longo tempo escondida
sob o véu de línguas então esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos
egípcios, às runas dos celtas, aos textos sacros, ainda desconhecidos, das
religiões asiáticas.
Essa nova cultura tinha que ser sincretista. “Sincretismo” não é somente, como
indicam os dicionários, a combinação de formas diversas de crenças ou práticas.
Uma combinação assim deve tolerar contradições. Todas as mensagens originais
contêm um germe de sabedoria e, quando parecem dizer coisas diferentes ou
incompatíveis, é apenas porque todas aludem, alegoricamente, a alguma verdade
primitiva.
Como consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi
anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua
obscura mensagem. É suficiente observar o ideário de qualquer movimento
fascista para encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A gnose
nazista nutria-se de elementos tradicionalistas, sincretistas ocultos. A mais
importante fonte teórica da nova direita italiana Julius Evola, misturava o
Graal com os Protocolos dos Sábios de Sião, a alquimia com o Sacro Império
Romano. O próprio fato de que, para demonstrar sua abertura mental, a direita
italiana tenha recentemente ampliado seu ideário juntando De Maistre, Guenon e
Gramsci é uma prova evidente de sincretismo.
Se remexerem nas prateleiras que nas livrarias americanas trazem a
indicação “New Age”, irão encontrar até mesmo Santo Agostinho e, que eu saiba,
ele não era fascista. Mas o próprio fato de juntar Santo Agostinho e
Stonehenge, isto é um sintoma de Ur-Fascismo.
2. O tradicionalismo implica a
recusa da modernidade. Tanto os fascistas como os nazistas adoravam a
tecnologia, enquanto os tradicionalistas em geral recusam a tecnologia como
negação dos valores espirituais tradicionais. Contudo, embora o nazismo tivesse
orgulho de seus sucessos industriais, seu elogio da modernidade era apenas o
aspecto superficial de uma ideologia baseada no “sangue” e na “terra” (Blut
und Boden).
A recusa do mundo moderno era camuflada como condenação do modo
de vida capitalista, mas referia-se principalmente à rejeição do espírito de
1789 (ou 1776, obviamente). O iluminismo, a idade da Razão eram vistos como o
início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido
como “irracionalismo”.
3. O irracionalismo depende
também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si, portanto, deve ser
realizada antes de e sem nenhuma reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por
isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas.
Da declaração atribuída a Goebbels (“Quando ouço falar em cultura, pego logo a
pistola”) ao uso frequente de expressões como “Porcos intelectuais”, “Cabeças
ocas”, “Esnobes radicais”, “As universidades são um ninho de comunistas”, a
suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo.
Os intelectuais fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar
a cultura moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores
tradicionais.
4. Nenhuma forma de sincretismo
pode aceitar críticas. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é um
sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica percebe o
desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o
desacordo é traição.
5. O desacordo é, além disso,
um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso desfrutando e
exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento
fascista ou que está se tornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo
é, portanto, racista por definição.
6. O Ur-Fascismo provém da
frustração individual ou social. O que explica por que uma das características
dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas,
desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas
pela pressão dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos
“proletários” estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se
auto exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria seu
auditório.
7. Para os que se vêem privados
de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo diz que seu único privilégio é o
mais comum de todos: ter nascido em um mesmo país. Esta é a origem do
“nacionalismo”. Além disso, os únicos que podem fornecer uma identidade às
nações são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a
obsessão do complô, possivelmente internacional. Os seguidores têm que se
sentir sitiados. O modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à
xenofobia. Mas o complô tem que vir também do interior: os judeus são, em
geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo,
dentro e fora. Na América, o último exemplo de obsessão pelo complô foi o
livro The New World Order, de Pat Robertson.
8. Os adeptos devem sentir-se
humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Quando eu era
criança ensinavam-me que os ingleses eram o “povo das cinco refeições”: comiam
mais frequentemente que os italianos, pobres mas sóbrios. Os judeus são ricos e
ajudam-se uns aos outros graças a uma rede secreta de mútua assistência. Os
adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo.
Assim, graças a um contínuo deslocamento de registro retórico, os inimigos são,
ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais. Os fascismos estão condenados a
perder suas guerras, pois são constitutivamente incapazes de avaliar com
objetividade a força do inimigo.
9. Para o Ur-Fascismo não há
luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. Logo, o pacifismo é conluio com o
inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. Contudo, isso
traz consigo um complexo de Armagedon: a partir do momento em que os inimigos
podem e devem ser derrotados, tem que haver uma batalha final e, em seguida, o
movimento assumirá o controle do mundo. Uma solução final semelhante implica
uma sucessiva era de paz, uma idade de Ouro que contestaria o princípio da
guerra permanente. Nenhum líder fascista conseguiu resolver essa contradição.
10. O elitismo é um aspecto
típico de qualquer ideologia reacionária, enquanto fundamentalmente
aristocrática. No curso da história, todos os elitismos aristocráticos e
militaristas implicaram o desprezo pelos fracos. O Ur-Fascismo não pode deixar
de pregar um “elitismo popular”. Todos os cidadãos pertencem ao melhor povo do
mundo, os membros do partido são os melhores cidadãos, todo cidadão pode (ou
deve) tornar-se membro do partido. Mas patrícios não podem existir sem plebeus.
O líder, que sabem muito em que seu poder não foi obtido por delegação, mas
conquistado pela força, sabe também que sua força baseia-se na debilidade das
massas, tão fracas que têm necessidade e merecem um “dominador”. No momento em
que o grupo é organizado hierarquicamente (segundo um modelo militar), qualquer
líder subordinado despreza seus subalternos e cada um deles despreza, por sua
vez, os seus subordinados. Tudo isso reforça o sentido de elitismo de
massa.
11. Nesta perspectiva, cada um é
educado para tornar-se um herói. Em qualquer mitologia, o “herói” é um ser
excepcional, mas na ideologia Ur-Fascista o heroísmo é a norma. Este culto do
heroísmo é estreitamente ligado ao culto da morte: não é por acaso que o mote
dos falangistas era: “Viva la muerte!” À gente normal diz-se
que a morte é desagradável, mas é preciso enfrentá-la com dignidade; aos
crentes, diz-se que é um modo doloroso de atingir a felicidade sobrenatural. O
herói Ur-Fascista, ao contrário, aspira à morte, anunciada como a melhor
recompensa para uma vida heroica. O herói Ur-Fascista espera impacientemente
pela morte. E sua impaciência, é preciso ressaltar, consegue na maior parte das
vezes levar os outros à morte.
12. Como tanto a guerra
permanente como o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o Ur-Fascista transfere
sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do machismo (que
implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais
não-conformistas, da castidade à homossexualidade). Como o sexo também é um
jogo difícil de jogar, o herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu
Ersatz fálico: seus jogos de guerra são devidos a uma inveja pênis
permanente.
13. O Ur-Fascismo baseia-se em
um “populismo qualitativo”. Em uma democracia, os cidadãos gozam de direitos
individuais, mas o conjunto de cidadãos só é dotado de impacto político do
ponto de vista quantitativo (as decisões da maioria são acatadas). Para o
Ur-Fascismo os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos e “o povo” é
concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que exprime “a vontade
comum”. Como nenhuma quantidade de seres humanos pode ter uma vontade comum, o
líder apresenta-se como seu intérprete. Tendo perdido seu poder de delegar, os
cidadãos não agem, são chamados apenas pars pro toto, para assumir o papel de
povo. O povo é, assim, apenas uma ficção teatral. Para ter um bom exemplo de
populismo qualitativo, não precisamos mais da Piazza Venezia ou do estádio de
Nuremberg.
Em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo TV ou internet, no qual
a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e
aceita como a “voz do povo”. Em virtude de seu populismo qualitativo, o
Ur-Fascismo deve opor-se aos “pútridos” governos parlamentares. Uma das
primeiras frases pronunciadas por Mussolini no Parlamento italiano foi:“Eu
poderia ter transformado esta assembleia surda e cinza em um acampamento para
meus regimentos”. De fato, ele logo encontrou alojamento melhor para seus
regimentos e pouco depois liquidou o Parlamento. Cada vez que um político põe
em dúvida a legitimidade do Parlamento por não representar mais a “voz do
povo”, pode-se sentir o cheiro de Ur-Fascismo.
14. O Ur-Fascismo fala a
“novilíngua”. A “novilíngua” foi inventada por Orwell em 1984, como língua
oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês, mas certos elementos de Ur-Fascismo são
comuns a diversas formas de ditadura. Todos os textos escolares nazistas ou
fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim
de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico. Devemos,
porém estar prontos a identificar outras formas de novilíngua, mesmo quando
tomam a forma inocente de um talk-show popular.
(…)
Eu estava descobrindo que, no meu país, podiam existir diversos partidos ao
mesmo tempo. E não só isso: como eu era um garoto esperto, logo me dei conta de
que era impossível que tantos partidos tivessem aparecido de um dia para o
outro. Entendi assim que eles já existiam como organizações clandestinas.
A mensagem celebrava o fim da ditadura e o retorno à liberdade: liberdade
de palavra, de imprensa, de associação política. Estas palavras, “liberdade”,
“ditadura” — Deus meu —, era a primeira vez em toda a minha vida que eu as lia.
Em virtude dessas novas palavras renasci como homem livre ocidental.
Devemos ficar atentos para que o sentido dessas palavras não seja esquecido
de novo. O Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis.
Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do mundo
para dizer: “Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras
desfilem outra vez pelas praças italianas!”. Ai de mim, a vida não é fácil
assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é
desmascará-lo e apontar o indicador para cada uma de suas novas formas — a cada
dia, em cada lugar do mundo.
Cito ainda as palavras de Roosevelt: “Ouso
dizer que, se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva,
buscando dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos
cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país” (4 de novembro
de 1938). Liberdade, liberação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja
este o nosso mote: “Não esqueçam”.
E permitam-me acabar com uma
poesia de Franco Fortini:
Sulla
spalletta del ponte
Le teste degli impiccati Nell'acqua della fonte La bava degli impiccati Sul lastrico del mercato Le unghie dei fucilati Sull'erba secca del prato I denti dei fucilati
Mordere l'aria
mordere i sassi
La nostra carne non à più d'uomini Mordere l'aria mordere i sassi Il nostro cuore non à più d'uomini.
Ma noi s'è
letto negli occhi dei morti
E sulla terra faremo libertà Ma l'hanno stretta i pugni dei morti La giustizia che si farà. |
Na amurada da
ponte
A cabeça dos enforcados Na água da fonte A baba dos enforcados No calçamento do mercado As unhas dos fuzilados Sobre a grama seca do prado Os dentes dos fuzilados
Morder o ar
morder as pedras
Nossa carne não é mais de homens Morder o ar morder as pedras Nosso coração não é mais de homens
Mas lemos nos
olhos dos mortos
E sobre a terra a liberdade havemos de fazer Mas estreitaram-na nos punhos os mortos A justiça que se há de fazer. |
Umberto Eco, O Fascismo
Eterno, in: Cinco Escritos Morais, Tradução: Eliana Aguiar, Editora Record, Rio de Janeiro,
2002.
[1] Usado atualmente em lógica para designar conjuntos “esfumados”, de contornos imprecisos, o termo fuzzy poderia ser traduzido como “esfumado”, “confuso”, “impreciso”, “desfocado”.
Leia na integra aqui: http://operamundi.uol.com.br
Nota: Umberto
Eco morreu na última sexta-feira (19/02), aos 84 anos, na sua casa, em Roma.
Sem comentários:
Enviar um comentário