domingo, 8 de janeiro de 2017

O bloqueio do parlamento e o paradoxo eleitoral na Guiné-Bissau

Os atores partidários decisivos da vida política guineense instauram um novo cenário de disputa com o bloqueio na casa legislativa [Parlamento]. Este fato reconfigura completamente a forma como a disputa política passa a ser encarada na atualidade guineense. Ao escrever este texto, meu interesse é trazer outro entendimento da relação entre o discurso da corrupção e golpes, suas contradições e complementaridades, para legitimar uma nova/velha hegemonia partidária [sempre frágil] dum poder político, através da realização de novas eleições.

1. Grupos e interesses em disputa
De forma bastante simplificada, mas complexa, há dois campos em disputa política. De um lado está o PAIGC que alega legitimidade eleitoral porque se sentiu injustiçado com a deposição do seu governo e a nomeação de sucessivos governos, por decreto, sob a égide do presidente de república. De outro, o presidente de república, por sua vez, procura distanciar-se do governo do seu próprio partido com o argumento de aumento de corrupção dos agentes do anterior governo do PAIGC. 

Soma-se a estes dois grupos, um terceiro grupo intermediário [Parlamento], como espaço de bloqueio político, articulando dois primeiros grupos e o PRS, com uma sociedade civil dividida, por razões político-partidárias óbvias, sobejamente apontadas por um grupo de jovens a pedir novas eleições multipartidárias, inclusive para o cargo de presidente da república, como forma de desbloquear o Parlamento e, consequentemente, desbloquear o país devido a restrições de “diretos a ter direitos” e violações de preceitos constitucionais, por parte do presidente.

Mais recentemente, surgem novos consensos sobre a necessidade de novas eleições [questão levantada pelo PAIGC], reforçando a justificativas de eleições em caso de inoperância do presidente, no uso de suas atribuições legais, que lhe confere a Constituição de República, em garantir os pressupostos constitucionais do cargo do qual foi investido pelo próprio Parlamento, como símbolo da continuidade do Estado guineense e garante da coesão nacional. Existe um descompasso que precisa ser analisado, e que não deve ser tomado como um dado adquirido.

2. O descompasso entre a disfunção do sistema e o próprio sistema
A necessidade de novas eleições, por aclamação do terceiro grupo, peca em várias direções. A primeira é que se confunde a disfunção do sistema [prática política] com o próprio sistema político [questões de ordem institucional, no quadro de regras de jogo democrático, constitucional e eleitoral]. O problema não está, necessariamente, na necessidade de novas eleições para corrigir o sistema político. O problema está na prática política para a construção da legitimidade parlamentar que está hoje em dia sob o fogo cruzado na casa legislativa.

Outra paradoxo: a luta descarada de poder pelo poder tem sentido aqui apenas para legitimar a máquina de eleições que precisa da legitimidade eleitoral-parlamentar, seu combustível, mas, com o avanço da “disputa sem regras”, a possibilidade de se apropriar de “regras do jogo democrático”, via eleição, no quadro institucional, sempre se tem revelado muito custosa com a construção de discurso de corrupção e práticas de golpes de Estado como instrumento político contra o inimigo para supostamente combater a injustiças, recorrendo novas eleições.

Os esclarecimentos de alguns fatos políticos evidenciam a relação histórica entre o discurso da corrupção e o de golpe de Estado. O assassinato do ex-chefe de Estado Maior General das Forças Armadas da Guiné-Bissau, Veríssimo Correia Seabra, na sequência da sublevação militar, em outubro de 2014, teve como mote a corrupção nas Forças Armadas, um discurso usado para ocultar as disputas contra “adversários inimigos”. A deposição do governo de Domingos Simões Pereira, pelo presidente de republica, ambos do PAIGC, em 2015, também foi acompanhada com alegação de promover “menos corrupção” no governo, como forma de resolver o problema político, social e econômico na sociedade civil e no próprio Estado. Todavia, a deposição de governos na Guiné-Bissau sempre foi por “mais poder para controle do dinheiro”. Não será diferente com a política de golpe.

3. Privilégios e recursos para poucos e a corrupção como fetiche
Na Guiné-Bissau, todos os golpes de Estado ou golpes parlamentares “legais” tiveram a corrupção como argumento, precisamente porque o discurso contra a corrupção sempre se apresenta eficiente como instrumento político e peça de campanha contra o “inimigo”, mas poucas vezes, ou quase nunca, casos de corrupção ou tentativas de golpes de estado tiveram um fechamento institucional esperado. Aqui há problemas não apenas jurídico-constitucional da corrupção, mas sim envolve questões de ordem conceitual, política e moral do que seja corrupção. Aparentemente é um conceito adquirido, mas também pode significar outras coisas para muitas coisas.

4. O impasse político e o problema do exercício da política de privilégios
A política de privilégios para poucos instaura o impasse para todos os atores decisivos da vida política nacional, em particular para o PRS e principalmente para o PAIGC e seus 15 dirigentes adversários-descontentes, principais atores da crise política. Mais do que isto: a retórica da corrupção desembocou num impasse político nunca visto na Guiné-Bissau, e a conclusão da necessidade de novas eleições tenta deslocar um problema sério da prática da prática política para o campo eleitoral, por meio de realização de novas eleições gerais. Mais uma vez pecamos ao confundir a diferença entre a prática política e o sistema político do governo vinculados a um modo de pensar.

Alguns exemplos para ilustração. Uma fraude eleitoral, por exemplo, não é um problema do sistema eleitoral. É um problema na forma como concebemos o exercício da prática política. Outra ilustração: o discurso de corrupção não é um problema necessariamente da deficiência do sistema político, em particular, da democracia, como forma de governo, mas sim de uma certa herança negativa na forma de conceber a prática política. A questão de legitimidade governativa só se torna problemática como resultado de práticas políticas assimiladas pela elite que esteja no poder ou que deseja o poder, em oposição ao “sistema de regras de jogo democrático” legitimado pela sociedade civil, quer via eleições periódicas, quer seja via controle social da governação. Esse é um dos nossos graves problemas. Outro ponto que merece destaque é a nossa cultura política. Não esqueçamos que a nossa tradição política de “esfera pública democrática” é de tradição militar de “partido único de Estado”.

5. Mudança da prática política como conhecimento da realidade social
É preciso uma “refundação crítica do Estado e da sociedade civil da Guiné-Bissau”. Isto é um imperativo dum “conhecimento da Guiné-Bissau”. Sem conhecimento da realidade, não é possível novas práticas políticas.


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