Amílcar Cabral e Víctor S. Maria
Cadernos de um diplomata (VII)
Bissau, Março de 1984 – Quando,
às sete da manhã de um dia perfeitamente anódino, iniciava o ritual de me
barbear, antecipando, em frente ao espelho, o dia relativamente monótono
que teria pela frente, algo aconteceu que transformou subitamente tudo,
dando-me para sempre a noção de que a rotina é um conceito muito, muito
relativo…
Foi de facto o que ocorreu
naquele dia de princípios de Março de 1984. Um dos empregados domésticos bateu
à porta para me dizer, com ar de inegável urgência, que eu era convocado
imediatamente para a residência da nossa Embaixada, mesmo ao lado, porque algo
de muito inesperado acontecera.
Fui, como pude, as abluções
matinais mal começadas, para encontrar o embaixador, de roupão a fazer, com
passos rápidos e impacientes, toda a extensão do grande salão da sua
residência.
Quando me viu, parou de súbito e
disse qualquer coisa que me ficaria gravada na memória:
- “Temos um problema grave a
resolver. O Primeiro Ministro Saúde Maria refugiou-se de madrugada aqui na
residência e pede asilo. Está aqui connosco. Está a descansar…”
Imagine-se o que passa pela
cabeça de um diplomata, ao receber de chofre uma notícia destas! O chefe do
governo do país onde está acreditado – refugiado na SUA missão diplomática!
Estávamos, no mínimo, com um
gravíssimo problema para resolver com o presidente Nino Vieira! Nós e, antes de
mais, o nosso governo…
Soubemos, quase logo a seguir que
a embaixada tinha sido imediatamente cercada por tropas, a nossa rua
completamente isolada, e que os militares tinham recebido ordem de
prender (e no caso de resistência, de eliminar fisicamente) qualquer membro do
governo que se quisesse juntar ao primeiro-ministro, imediatamente destituído
aliás da sua função de chefe do governo. O que nos colocaria o problema
caricato (e problema menor naquelas circunstâncias) de saber como o haveríamos
de tratar protocolarmente, a partir daí…
Cumpria eu o que pensava serem os
últimos dias do meu posto em Bissau, com um contentor já a porta da minha casa,
fechado e pronto para seguir para Bordéus, para onde eu tinha sido transferido
como cônsul-geral…
Iniciou-se então para mim um
período dos mais ricos em ensinamentos e também incertos da minha carreira, tão
no início ainda. Incertos porque a situação
poderia prolongar-se sem solução imediata. Só me lembrava do Cardeal Midszenty,
15 anos refugiado na embaixada americana em Budapeste!
E ricos em ensinamentos porque o
pedido de asilo de Victor Saúde Maria na embaixada punha em marcha delicados
mecanismos do relacionamento entre países.
Por outro lado, o ineditismo da
situação, punha o governo português numa situação de facto muito delicada.
Antecipando: Portugal geriu de
forma muito honrosa esta situação difícil.
A primeira decisão foi a de, como
se impunha, comunicar imediatamente o ocorrido a Lisboa. O que foi feito.
O ex-primeiro-ministro alegava recear pela sua vida, se fosse deixado sem
protecção, pois ouvira Nino Vieira acusá-lo de “traição” em comício realizado
no interior do país. Homem habituado a tratar com militares, a potencial vítima
sabia que para traição só havia uma pena…execução sumária, após julgamento
sumaríssimo!
Víctor Saúde Maria(1980)
A história de Saúde Maria, a que
conduziu aquele desfecho dramático, era a história clássica de um homem
inteligente que quis ter razão antes de tempo. O seu percurso não podia ser o
mais bem sucedido: como me recordaria em várias conversas na embaixada, foi
durante os anos de militância o representante das relações externas do PAIGC
(período da guerra) e ministro dos negócios estrangeiros da Guiné-Bissau de
1974 a 1982, tendo assumido então as funções de chefe do governo, um ano depois
da minha chegada a Bissau. Assisti pois desde o início à “lua de mel política”
entre PR e o seu PM. De pouca dura, como se percebe.
A Guiné estava num impasse, com
gravíssimos problemas estruturais, de que nunca aliás recuperou, e Saúde Maria
era não só um bom gestor como um homem de contactos, no plano internacional.
Pensava Nino ser ele a pessoa indicada para tentar fazer o país da crise de
solvabilidade, para não falar já de credibilidade, em que estava mergulhado.
E Saúde Maria tinha de facto uma
agenda que se revelou fatal, porque prematura: reduzir ao mínimo a cooperação
com os países de leste que não era útil nem fazia progredir o país; e reavivar
o sector privado, com primazia na ajuda e na cooperação, por parte dos
parceiros ocidentais, mormente Portugal e França.
Num contexto internacional
(princípio da década de 80) ainda muito marcado por lealdades ideológicas, não
antecipava ninguém o que o fim da década nos reservaria, com a impensável
dissolução da União Soviética.
Saúde Maria começou a tomar
medidas ousadas de liberalização económica e a granjear um protagonismo junto
da população que inquietaram Nino. Com uma base de apoio puramente
militar, o presidente sabia que, se não controlasse a situação interna, perdia
o poder, tão óbvio era o grau de insatisfação no interior, onde se vivia muito
mal.
As negociações para garantir um
salvo-conduto a Saúde Maria, que lhe permitisse sair do país,
prolongaram-se por semanas e Nino negou sempre a possibilidade do ex-PM se
ausentar da Guiné.
Uma fórmula de reconciliação foi
entretanto encontrada e, com mais algum tempo de espera, foram obtidas do
presidente garantias, dadas ao governo de Lisboa, que Saúde não seria
maltratado nem submetido a qualquer regime de detenção, o que Nino honrou,
acabando por se ficar por um mitigado exílio interno, de residência fixa de
alguns anos em Bolama, a segunda cidade da Guiné.
Este episódio constituiu, repito,
uma espécie de curso intensivo de relações políticas, pelo qual pude entrever
aspectos únicos da fragilidade das conexões entre pessoas e os ditames do poder
e sua lógica.
E como em todas as situações,
houve também o lado tocante porque humano. Como Saúde Maria a pedir-me para ser
eu a escrever (ele estava “muito nervoso”,justificou-se) uma carta
de reconciliação com o presidente guineense, o que fiz e que ele, concordando,
assinou…
E as grandes conversas com o
ex-Primeiro Ministro, sobre o seu passado, sobre a personalidade de Amílcar
Cabral, e sobre uma sua (de Saúde Maria) ida a Londres, para um projectado
encontro com um representante do Prof. Marcelo Caetano que nunca se
concretizou, no quadro das tentativas goradas de solução política para o
conflito na Guiné.
O embaixador Francisco Henriques
da Silva que foi chefe da missão diplomática de Portugal na Guiné vários anos
mais tarde – escreveu recentemente um livro muito crítico sobre a Guiné que
considera um Estado falhado.
Para os estudiosos, aquele
pequeno país lusófono é de facto um caso de estudo do que NÃO correu bem depois
da independência política.
O povo guineense merece um futuro
melhor.
Por: Carlos Frota *
* Ex-embaixador de Portugal
nas Coreias, ASEAN e Indonésia. Docente da Universidade de S. José.
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