domingo, 5 de junho de 2016

Muito fora da rotina…

Amílcar Cabral e Víctor S. Maria
Cadernos de um diplomata (VII)

Bissau, Março de 1984 – Quando, às sete da manhã de um dia perfeitamente anódino, iniciava o ritual de me barbear, antecipando, em frente ao espelho, o dia relativamente monótono  que teria pela frente, algo aconteceu que transformou subitamente tudo, dando-me para sempre a noção de que a rotina é um conceito muito, muito relativo…

Foi de facto o que ocorreu naquele dia de princípios de Março de 1984. Um dos empregados domésticos bateu à porta para me dizer, com ar de inegável urgência, que eu era convocado imediatamente para a residência da nossa Embaixada, mesmo ao lado, porque algo de muito inesperado acontecera.

Fui, como pude, as abluções matinais mal começadas, para encontrar o embaixador, de roupão a fazer, com passos rápidos e impacientes, toda a extensão do grande salão da sua residência.

Quando me viu, parou de súbito e disse qualquer coisa que me ficaria gravada na memória:

- “Temos um problema grave a resolver. O Primeiro Ministro Saúde Maria refugiou-se de madrugada aqui na residência e pede asilo. Está aqui connosco. Está a descansar…”

Imagine-se o que passa pela cabeça de um diplomata, ao receber de chofre uma notícia destas! O chefe do governo do país onde está acreditado – refugiado na SUA missão diplomática!

Estávamos, no mínimo, com um gravíssimo problema para resolver com o presidente Nino Vieira! Nós e, antes de mais, o nosso governo…

Soubemos, quase logo a seguir que a embaixada tinha sido  imediatamente cercada por tropas, a nossa rua completamente isolada, e que os militares  tinham recebido ordem de prender (e no caso de resistência, de eliminar fisicamente) qualquer membro do governo que se quisesse juntar ao primeiro-ministro, imediatamente destituído aliás da sua função de chefe do governo. O que nos colocaria o problema caricato (e problema menor naquelas circunstâncias) de saber como o haveríamos de tratar protocolarmente, a partir daí…

Cumpria eu o que pensava serem os últimos dias do meu posto em Bissau, com um contentor já a porta da minha casa, fechado e pronto para seguir para Bordéus, para onde eu tinha sido transferido como cônsul-geral…

Iniciou-se então para mim um período dos mais ricos em ensinamentos e também incertos da minha carreira, tão no início ainda. Incertos porque a situação poderia prolongar-se sem solução imediata. Só me lembrava do Cardeal Midszenty, 15 anos  refugiado na embaixada americana em Budapeste!
E ricos em ensinamentos porque o pedido de asilo de Victor Saúde Maria na embaixada punha em marcha delicados mecanismos do relacionamento entre países.

Por outro lado, o ineditismo da situação, punha o governo português numa situação de facto muito delicada.

Antecipando: Portugal geriu de forma muito honrosa esta situação difícil.

A primeira decisão foi a de, como se impunha, comunicar  imediatamente o ocorrido a Lisboa. O que foi feito. O ex-primeiro-ministro alegava recear pela sua vida, se fosse deixado sem protecção, pois ouvira Nino Vieira acusá-lo de “traição” em comício realizado no interior do país. Homem habituado a tratar com militares, a potencial vítima sabia que para traição só havia uma pena…execução sumária, após julgamento sumaríssimo!
Víctor Saúde Maria(1980)
A história de Saúde Maria, a que conduziu aquele desfecho dramático, era a história clássica de um homem inteligente que quis ter razão antes de tempo. O seu percurso não podia ser o mais bem sucedido: como me recordaria em várias conversas na embaixada, foi durante os anos de militância o representante das relações externas do PAIGC (período da guerra) e ministro dos negócios estrangeiros da Guiné-Bissau de 1974 a 1982, tendo assumido então as funções de chefe do governo, um ano depois da minha chegada a Bissau. Assisti pois desde o início à “lua de mel política” entre PR e o seu PM. De pouca dura, como se percebe.

A Guiné estava num impasse, com gravíssimos problemas estruturais, de que nunca aliás recuperou, e Saúde Maria era não só um bom gestor como um homem de contactos, no plano internacional. Pensava Nino ser ele a pessoa indicada para tentar fazer o país da crise de solvabilidade, para não falar já de credibilidade, em que estava mergulhado.

E Saúde Maria tinha de facto uma agenda que se revelou fatal, porque prematura: reduzir ao mínimo a cooperação com os países de leste que não era útil nem fazia progredir o país; e reavivar o sector privado, com primazia na ajuda e na cooperação, por parte dos parceiros ocidentais, mormente Portugal e França.

Num contexto internacional (princípio da década de 80) ainda muito marcado por lealdades ideológicas, não antecipava ninguém o que o fim da década nos reservaria, com a impensável dissolução da União Soviética.

Saúde Maria começou a tomar medidas ousadas de liberalização económica e a granjear um protagonismo junto da população   que inquietaram Nino. Com uma base de apoio puramente militar, o presidente sabia que, se não controlasse a situação interna, perdia o poder, tão óbvio era o grau de insatisfação no interior, onde se vivia muito mal.

As negociações para garantir um salvo-conduto a Saúde Maria,  que lhe permitisse sair do país, prolongaram-se por semanas e Nino negou sempre a possibilidade do ex-PM se ausentar da Guiné.
Uma fórmula de reconciliação foi entretanto encontrada e, com mais algum tempo de espera, foram obtidas do presidente garantias, dadas ao governo de Lisboa, que Saúde não seria maltratado nem submetido a qualquer regime de detenção, o que Nino honrou, acabando por se ficar por um mitigado exílio interno, de residência fixa de alguns anos em Bolama, a segunda cidade da Guiné.

Este episódio constituiu, repito, uma espécie de curso intensivo de relações políticas, pelo qual pude entrever aspectos únicos da fragilidade das conexões entre pessoas e os ditames do poder e sua lógica.

E como em todas as situações, houve também o lado tocante porque humano. Como Saúde Maria a pedir-me para ser eu a  escrever (ele estava “muito nervoso”,justificou-se) uma  carta de reconciliação com o presidente guineense, o que fiz e que ele, concordando, assinou…

E as grandes conversas com o ex-Primeiro Ministro, sobre o seu passado, sobre a personalidade de Amílcar Cabral, e sobre uma sua (de Saúde Maria) ida a Londres, para um projectado encontro com um representante do Prof. Marcelo Caetano que nunca se  concretizou, no quadro das tentativas goradas de solução política para o conflito na Guiné.

O embaixador Francisco Henriques da Silva que foi chefe da missão diplomática de Portugal na Guiné vários anos mais tarde – escreveu recentemente um livro muito crítico sobre a Guiné que considera um Estado falhado.

Para os estudiosos, aquele pequeno país lusófono é de facto um caso de estudo do que NÃO correu bem depois da independência política.

O povo guineense merece um futuro melhor.

 Por: Carlos Frota *

* Ex-embaixador de Portugal nas Coreias, ASEAN e Indonésia. Docente da Universidade de S. José.

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