Por: Pacheco Pereira
O secretário de
Estado quer-nos convencer de algo muito mais grave: é de que não deu por ela
que lhe faltavam os números do dinheiro que ia para os offshores.
A mentira, seja sob
forma directa ou rebuscada, em matérias públicas é inaceitável. Sobre isso não
vale a pena dizer mais nada. Os governantes não tem obrigação de dizer a
verdade — sim, há razões de Estado que podem implicar a mentira — mas nenhuma
cobre os casos recentes. Mentir pode ser legítimo, por exemplo, para esconder,
até ao momento do seu anúncio, uma desvalorização da moeda, ou quando está em
curso uma qualquer operação com riscos para as pessoas ou para o Estado,
sensível à revelação irresponsável da verdade.
São excepções, mesmo muito
excepcionais, e precisam de ser muito explicadas a posteriori,
quando finalmente se pode saber a verdade sem custos. Há matérias delicadas
cobertas pelo segredo do Estado que justificam que um governante, quando
interrogado directamente, tenha que mentir. Não deixa de ser mentira no momento
em que é proferida, mas trata-se de uma mentira instrumental, destinada a
proteger um bem maior. É um estatuto que pode ser alvo de abuso, e é-o muitas
vezes, mas os limites éticos do dilema verdade/mentira não se aplicam neste
tipo de “sombras”.
Mas não é, de todo,
o caso da história dos SMS, nem do misterioso caso das estatísticas dos offshores,
que nada justifica serem cobertos por qualquer “manto diáfano” de mentiras,
meias-mentiras, sugestão de mentiras e omissões da verdade. A cabeça de um
ministro ou a honra de há muito perdida de um ex-governo estão em causa? Não
mentissem, nem nos enganassem. Mas, dito isto, também é preciso ter muito
cuidado, para que a mediatização medíocre das redes sociais e de alguma
imprensa não confunda questões sérias com outras de menor gravidade. E o caso
Centeno e os milhões dosoffshores não são comparáveis em importância,
sendo que toda a gente já percebeu o que se passou no primeiro caso, e ainda
muito pouco se percebeu do segundo.
O que sabemos sobre
o dinheiro saído para os offshores durante a governação
PSD-CDS? Sabemos que foi muito, muitos milhares de milhões de euros, de que os
dez mil milhões de que se fala agora são apenas uma parte. Sabemos que uma
parte saiu legalmente e também sabemos, por vários processos em curso, que
outra parte saiu ilegalmente. Vamos deixar para já a parte ilegal, de dinheiro
de pagamento de subornos, de corrupção, de negócios à margem da lei, e vamos
apenas falar do que saiu legalmente, e nessa parte podemos apenas ficar-nos por
esta magra fatia de dez milhares de milhões que não foram devidamente incluídos
nas estatísticas e sobre os quais não sabemos ainda até que ponto os
procedimentos de verificação habituais pelo fisco se realizaram, ou seja, se
são resultado de actividades legais sem mácula fiscal. Por que é que isso
aconteceu e o que é que isso significa?
Vamos seguir a mais
benévola das hipóteses, de que tudo estava legal, e que apenas não se fez o
registo estatístico. Comecemos por um ponto prévio que é verdade para todas as
histórias que envolvem offshores. Já ouvi dezenas de explicações
esforçadas para justificar por que razão as pessoas e as empresas colocam o
dinheiro nos offshores, desde a fuga ao conhecimento do
património nos divórcios milionários até à protecção de património face a
credores, aos pagamentos a jogadores de futebol, passando pelas necessidades de
pagamentos no comércio internacional. Tudo é coberto por dois mantos: um é de
que se trata de processos legais, por isso incontestáveis pela crítica; o outro
é que, havendo paraísos fiscais em qualquer outra parte exótica do mundo, não é
possível acabar com eles em qualquer outro sítio.
Mas isso não implica que se
considere normal o uso de offshorese, numa sociedade em que os
governantes se indignam com os direitos “adquiridos” dos mais fracos, tenham
uma soberana indiferença face a práticas dos mais ricos que roçam a ilegalidade
e que prejudicam, e não pouco, a riqueza do país. E quando isto se passa em
tempos em que os governantes fazem um discurso de austeridade contra os que não
podem fugir aos impostos e aos cortes, e são indiferentes às práticas dos mais
ricos de tirar dinheiro, riqueza, do seu país, revolta. Este é o pano de fundo
em que podemos discutir esta questão, e aplica-se como uma luva ao Governo
PSD-CDS, onde o ataque aos mais fracos foi a regra, e a complacência com os
mais poderosos foi também a regra.
No fundo, no fundo,
o núcleo duro de ideias sobre a sociedade e a economia do Governo Passos-Portas
foi que a recuperação do país passava pelo aumento da riqueza dos mais ricos,
que traria por arrasto uma melhoria das condições de vida dos mais pobres. Era
em cima que deveria haver “liberdade”, enquanto em baixo deveria haver
“ajustamento” e cortes, até porque os de baixo já estavam mais acima do que
deviam e tinham que ser postos na ordem e devolvidos “às suas posses
habituais”.
Da legislação laboral ao “ajustamento”, este era o programa. Dêem
as voltas que derem, esta era a concepção e ainda o é, como se vê na questão do
salário mínimo. Qualquer ideia, aliás na base do ideário social-democrata, de
que o Estado deveria garantir um equilíbrio social, era e é tida como uma
violação das regras da “economia”, com os de baixo a quererem mais do que a
“economia” lhes pode dar. Em cima, não há essas restrições e, por isso, a
indiferença face ao que acontece com os offshores é
completamente natural.
Este é, insisto, o
pano de fundo da interpretação mais benévola da falta de dados sobre osoffshores:
que saíssem dezenas de milhares de euros do país, não interessava aos
governantes porque não estava no centro das suas preocupações, como estava
cortar reformas e salários e levar o fisco até aos cabeleireiros e aos
biscates. Tratava-se de uma prática normal da “economia”. Mas se esta é a
interpretação mais benévola, não é a mais sensata, como se vê pelas explicações
atabalhoadas que governantes do tempo do PSD-CDS têm vindo a dar sobre o
que aconteceu. E aqui é que, como no caso de Centeno, entendo que é uma afronta
para os portugueses tomá-los por parvos, só que neste caso num assunto muito
mais grave.
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mais profundos do Público. Desde Passos Coelho,
furioso e malcriado na Assembleia, até ao passa-culpas do anterior secretário
de Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio, até ao silêncio da ex-ministra das
Finanças que acha que não é nada com ela, todos estão a tomar-nos por parvos.
Afinal, a culpa foi dos serviços que não fizeram a estatística devida, ou dos
procedimentos informáticos, que, pelos vistos, foram modernizados só para um
dos lados do escalão de rendimentos, mas que parecem funcionar muito mal no
topo dos rendimentos, porque, tanto quanto eu saiba, não foram os funcionários
públicos, nem os reformados, nem os empregados do comércio, nem os operários,
nem os enfermeiros, nem os polícias, que colocaram o dinheiro em offshores.
Aliás, já não é a primeira vez que este tipo de implausibilidades acontecem nas
finanças do Governo PSD-CDS, como foi o caso da “lista VIP”, já muito
esquecido.
Mas há pior: o
secretário de Estado quer-nos convencer de algo muito mais grave: é de que não
deu por ela que lhe faltavam os números do dinheiro que ia para os offshores.
Das duas, uma: ou foi grossa negligência, ou preferiu olhar para o lado, visto
que os números eram incómodos para o Governo.
Mas, mesmo que seja assim, de
novo a mera sensatez obriga-nos a considerar como absolutamente implausível que
ele, responsável pelo fisco, nunca se tenha perguntado, mesmo numa conversa
casual: “Olhe lá, senhor director-geral, quanto dinheiro está a sair do país
para os offshores?”. E Passos e a ministra também nunca sentiram
sequer curiosidade sobre esse aspecto crucial da nossa economia, para
verificarem que, afinal, não havia a estatística?
Presumir que tenha
sido assim é tomar-nos por parvos, insisto. E eu não gosto.
Fonte: Público
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