Crónica
A VOZ QUE ME TEM CATIVO
E foi assim
que recebi a notícia. É credível, não há que duvidar. Confio plenamente. Foi a
mesma voz de sempre que a anunciou. Como duvidar da mesma voz que há décadas
insiste em colorir o meu imaginário?
A
mesma voz estéreo que me retrata o mundo para lá da minha janela. Para lá deste
quarto onde, há décadas, resisto ao tempo. À espera do evidente. Do fim que
tarda a chegar, adiando o recomeço.
A
notícia veio, segura de si, pela mesma voz que me falou do fim da guerra e o
início de tantas outras. A voz que me retratou poéticas revoluções de lendários
líderes como Cabral e Castro. A mesma voz que me anunciara a morte de um negro
norte-americano que teve um sonho tão comungado por tantos outros. Que me
retratou o atentado ao João Paulo II e a morte da Madre Teresa de Calcutá. Sim,
a mesma voz que me revela os improváveis da vida, anunciando trovoadas nas
solarengas tardes primaverais.
Como
duvidar daquele estilizada voz, de vigoroso timbre e ritmada cadência? Bem
ensaiada essa voz que me tem cativo faz tempo. Não, não é individual. É uma voz
colectiva e sai do meu transístor preto de forma uníssono, multiplicando-se de
cor em cor, de tonalidades em tonalidades, de factos em factos. De facto!
Sim,
a notícia chegou pela voz que me acordou para a vida.
Chovia intensamente naquela noite mas nem mesmo a trovoada apagara aquela voz. Serena, de vigoroso timbre, que me anunciara as vestes do mundo. Para lá da minha janela.
Chovia intensamente naquela noite mas nem mesmo a trovoada apagara aquela voz. Serena, de vigoroso timbre, que me anunciara as vestes do mundo. Para lá da minha janela.
Faz
tempo que ninguém me visita. Ela, a voz, é a única e autorizada companhia. Não
pede licença para entrar porque tem a porta sempre aberta. Sou todo ouvidos.
Ela dá-me música e leva-me à missa aos Domingos. Presente, eternamente
presente, traz-me tantas outras vozes contrárias que pinta o meu imaginário
feito um puzzle multicolor, onde cada peça é uma vida. Onde cada facto é um
pedaço de realidades múltiplas perdidas num labirinto.
Noutro
dia levou-me ao baile e juntou-me de novo aos amigos de sempre. Os amigos que
nunca partiram. Os verdadeiros amigos nunca partem! Estão todos comigo. Estão
ancorados numa memória já cansada, mas fortemente viva. Foi numa tarde de
Sábado que, de súbito, a voz anunciara uma música que me levara para um salão
onde estavam todos os amigos de toda a vida. E dançamos abraçados, como se
nunca nos tivéssemos separado. Inocentes e cúmplices na nossa pueril meninice.
Eternos!
Hoje,
a voz acordou-me para dizer que a vida me fora devolvida. E que esta era a
derradeira oportunidade. Única e que eu era capaz. Motivado, levantei-me da
cama e lentamente caminhei para a porta. Já na rua, cambaleando, com o pequeno
transístor preto no bolso, a voz insistiu: “Vês como és capaz”? E deu-me música
de novo!
E
foi assim que recebi a notícia. É credível, não há que duvidar. Confio
plenamente. Foi a mesma voz de sempre que a anunciou. Como duvidar da mesma voz
que há décadas insiste em colorir o meu imaginário?
Por: Waldir Araújo
Sem comentários:
Enviar um comentário