Os dez capítulos da vida de Mário Soares Recorde os episódios mais marcantes da vida política, social e familiar do ex-Presidente da República.
I - O
rebelde bem nascido
Filho de um padre que se fez maçon, Soares cedo despertou para a política "As minhas ideias vêm do meu pai e dos amigos dele. A minha casa respirava política". Mário Soares contou assim ao seu biógrafo, Joaquim Vieira, uma juventude agitada, que fez dele um rapaz interessado e irrequieto. Filho de João Lopes Soares, político que durante a I República foi deputado, governador civil e ministro das colónias, e de Elisa Nobre Baptista, dona de uma pensão na Rua Ivens, no Chiado, Mário tem uma história familiar fora do comum.
Filho de um padre que se fez maçon, Soares cedo despertou para a política "As minhas ideias vêm do meu pai e dos amigos dele. A minha casa respirava política". Mário Soares contou assim ao seu biógrafo, Joaquim Vieira, uma juventude agitada, que fez dele um rapaz interessado e irrequieto. Filho de João Lopes Soares, político que durante a I República foi deputado, governador civil e ministro das colónias, e de Elisa Nobre Baptista, dona de uma pensão na Rua Ivens, no Chiado, Mário tem uma história familiar fora do comum.
O pai, João Soares, nascido em 1878, é ordenado padre em 1900. O
que não o impede de ter um filho sete anos mais tarde e de o assumir como seu.
Pouco depois da revolução republicana de 1910, e já depois de abandonar o
sacerdócio, instala-se na pensão lisboeta de Elisa, onde esta vive com o marido
e o filho, Cândido. E está ainda casada quando inicia a relação com o maçon
João Soares.
Iniciam uma vida comum com os filhos de ambos, Cândido e
Tertuliano, que têm 18 e 19 anos quando nasce Mário Alberto Nobre Lopes Soares.
Vem ao mundo em Lisboa, a 7 de Dezembro de 1924. João e Elisa só se casam em
1933, depois de o Vaticano anular a ordenação sacerdotal de Soares. Estimulado
pela vida agitada do pai - que com a revolução de 1928 e posterior ascensão ao
poder de Salazar, se torna personna non grata para o novo regime - Mário Soares
conhece desde tenra idade as grandes figuras da oposição. Tem como professor no
Colégio Moderno - fundado em Lisboa pelo pai, que, para além de tantas outras
coisas, era um reputado pedagogo - o militante comunista Álvaro Cunhal, que
viria a tornar-se o lendário líder do PCP.
Mário tem outros professores
marcantes, como o filósofo Agostinho da Silva, ou marxista António Salema, mas
Cunhal molda a sua maneira de pensar. "Achava-o um homem coerente e
fascinante, um idealista, um puro que sonhava com a revolução e, ao mesmo
tempo, um esteta: andava sempre bem vestido, trajava com gosto, embora
modestamente", explica Soares a Maria João Avillez numa das suas várias
biografias. Com a consolidação do Estado Novo, João Soares passa dificuldades.
É preso em várias ocasiões, vive clandestino, é deportado, exila-se. Mário
guarda nas memórias de infância as visitas ao pai nas cadeias do Aljube ou do
Forte de São Julião da Barra. Ou de o ver em encontros fugazes, em lugares
seguros que a resistência clandestina ia forjando. Durante o ensino secundário,
Mário aproxima-se de vários movimentos comunistas e defende com convicção os
ideais marxistas. Mas é ainda uma militância mais teórica do que prática. Aos
18 anos, é detido pela primeira vez, após desacatos entre um grupo de jovens
comunistas (com quem estava) e uma delegação da Mocidade Portuguesa.
Desta vez,
o castigo limita-se a um ‘raspanete da PVDE, antecessora da PIDE. Longe de ser
um aluno brilhante - preferia alinhar com os colegas mais rebeldes em vez de
ficar à sombra da condição de filho do diretor do Colégio Moderno, Soares chega
ao curso de Ciências Histórico-Filosóficas, da Faculdade de Letras de Lisboa.
Faria depois o curso de Direito, cumprindo a vontade do pai.
II - Comunista e
alvo da PIDE
Na Faculdade de Direito, Soares aderiu ao PCP e tornou-se alvo da PIDE Com a entrada na Universidade, Mário Soares junta-se convictamente à máquina comunista. Milita na juventude do PCP e junta-se ao PCP em 1942, apesar das reservas que tinha em relação à liderança de Estaline da União Soviética. Não lhe falta vontade e energia para tentar mudar o estado de coisas no país, mas é, ainda assim, um jovem relativamente despreocupado, que os colegas da época lembram como "generoso" e "desapegado do dinheiro". É frequente ser Soares a pagar a conta quando se juntam nas tertúlias dos cafés de Lisboa, a discutir política. No ano lectivo de 1944/45, Soares conhece uma colega que combina os estudos de Letras com o início de uma carreira prometedora no Teatro Nacional.
Na Faculdade de Direito, Soares aderiu ao PCP e tornou-se alvo da PIDE Com a entrada na Universidade, Mário Soares junta-se convictamente à máquina comunista. Milita na juventude do PCP e junta-se ao PCP em 1942, apesar das reservas que tinha em relação à liderança de Estaline da União Soviética. Não lhe falta vontade e energia para tentar mudar o estado de coisas no país, mas é, ainda assim, um jovem relativamente despreocupado, que os colegas da época lembram como "generoso" e "desapegado do dinheiro". É frequente ser Soares a pagar a conta quando se juntam nas tertúlias dos cafés de Lisboa, a discutir política. No ano lectivo de 1944/45, Soares conhece uma colega que combina os estudos de Letras com o início de uma carreira prometedora no Teatro Nacional.
Chama-se Maria de Jesus Barroso e viria a
tornar-se a sua companheira de toda a vida. A vitória dos aliados na II Guerra
Mundial dá alento aos jovens opositores. Soares está na organização de uma
gigantesca manifestação que corre Lisboa em Maio de 1945, dando vivas aos
vencedores. Mário convence-se de que a vitória do campo democrático e dos comunistas
significaria, por si, o fim da ditadura portuguesa. Enganou-se. Junta-se ao
MUD, Movimento de Unidade Democrática que se formou para concorrer às eleições
para a Assembleia Nacional em 1945. Mas o MUD não chegaria aos boletins de
voto, desistindo com queixas de falta de condições democráticas. Soares, com o
nome de código "Duarte", vai-se afastando do PCP e recusa mesmo
passar à clandestinidade.
Não tinha perfil para viver escondido. "Com o
meu temperamento não dava. Queria ter gajas, ir ao cinema, viajar. Tinha
ambições várias, ambições literárias", contou a Joaquim Vieira numa
entrevista para a biografia que este fez de Soares. Em 1946, Soares inscreve o
seu nome nas fichas da PIDE. É preso com toda a Comissão Central do MUD,
acusados de atitudes "antipatrióticas". Acabariam por sair todos sob
fiança e sem queixas de maus tratos. Nos anos seguintes, Soares voltaria a ser
preso em várias ocasiões. Em 1948, cruza-se com o pai, preso por estar
envolvido numa tentativa de golpe de estado, na prisão do Aljube.
Os colegas de
cárcere recordam a sua coragem e espírito otimista. E até a altivez de quem
recusava tomar um duche de água fria no mesmo sítio onde os prisioneiros faziam
as suas necessidades. Soares, menino de boas famílias, preferia ficar a cheirar
mal do que sujeitar-se a essas circunstâncias. Membro da equipa do general
Norton de Matos na candidatura deste às presidenciais de 1949, Soares
consolidava a sua posição de destacado oposicionista, mas cai em desgraça junto
do candidato presidencial quando o PCP o obriga a contar-lhe a sua ligação ao
partido. Soares não perdoa o gesto e começa aí o seu afastamento definitivo da
causa comunista. Norton de Matos desiste da corrida presidencial, Soares voltou
a ser preso.
A quarta vez, desta vez com requintes de malvadez de um
interrogador da PIDE que lhe aponta uma pistola e lhe garante que, se o matasse
ali "como um cão", seria considerado legítima defesa. É na prisão que
se casa, por procuração, com Maria de Jesus Barroso, já então grávida de três
meses de João, o primeiro filho do casal. Maria vive tempos difíceis. Duas
peças em que participa no Teatro Nacional são proibidas pela censura e a
direção do Teatro recebe instruções para não a voltar a contratar. A auspiciosa
carreira de atriz, que então despontava, ficava prematuramente comprometida.
João Soares nasce a 29 de agosto de 1949, pouco depois de o pai ser libertado
da prisão. Isabel, a segunda filha do casal, viria ao mundo em janeiro de 1951.
III - Preso, vigiado, deportado
Mário Soares fez-se advogado para sustentar a família, mas vivia para a política Concluído o curso de Histórico-Filosóficas, em janeiro de 1952, Mário Soares continua a depender financeiramente do pai. Sem poder dar aulas, não só por não ter concluído a parte pedagógica do curso mas também por a PIDE lhe recusar o indispensável atestado de idoneidade, Soares inscreve-se no curso de Direito da Faculdade de Lisboa, cumprindo o desejo do seu pai. Casado e pai de dois filhos, Soares tira o curso entre 1952 e 1957. É aluno de Marcelo Caetano, então eminente professor de Direito Administrativo, que então iniciava o percurso político que faria dele o sucessor de Salazar.
Mário Soares fez-se advogado para sustentar a família, mas vivia para a política Concluído o curso de Histórico-Filosóficas, em janeiro de 1952, Mário Soares continua a depender financeiramente do pai. Sem poder dar aulas, não só por não ter concluído a parte pedagógica do curso mas também por a PIDE lhe recusar o indispensável atestado de idoneidade, Soares inscreve-se no curso de Direito da Faculdade de Lisboa, cumprindo o desejo do seu pai. Casado e pai de dois filhos, Soares tira o curso entre 1952 e 1957. É aluno de Marcelo Caetano, então eminente professor de Direito Administrativo, que então iniciava o percurso político que faria dele o sucessor de Salazar.
Depois de concluir a segunda licenciatura, Soares dá aulas
na escola privada do pai, o Colégio Moderno. O corte com o PCP tinha-se
consumado e Soares estava menos ativo politicamente, mas nem por isso deixava
de se empenhar na oposição. Era um professor pouco assíduo e pouco dado a
seguir o currículo oficial. Inicia atividade como advogado, abrindo escritório
com uma nova geração de juristas, entre os quais o grande amigo Salgado Zenha.
Mas nunca teve grandes ambições na advocacia: "Era um meio de
subsistência, uma almofada para me dedicar à política".
Em 1958, a
candidatura do general Humberto Delgado à Presidência da República traz Soares
de volta à ribalta dos movimentos oposicionistas. Soares nem é um adepto
entusiasmado de Delgado - considerava-o demasiado próximo do Salazarismo, dado
que fora um dos mais empenhados obreiros dos primeiros anos do Estado Novo. Mas
o apoio popular ao general que prometia "obviamente demitir" António
Salazar convence-o de que Delgado pode ser o homem que faria abalar o regime.
Humberto Delgado perde as eleições para Américo Tomaz, numas eleições em que se
torna difícil ao regime disfarçar a fraude monumental do processo eleitoral.
Sempre próximo dos líderes de golpes como a Revolta da Sé, em 1959, ou o Golpe
do Quartel de Beja, em 1962, Soares volta a ser preso. No total, Soares é
detido em12 ocasiões, somando um total de mais de três anos de detenção.
Na
maioria das vezes, é libertado sem chegar a conhecer qualquer acusação.
Sem nunca esmorecer a atividade política, em 1964, está na fundação da Acção
Socialista Portuguesa (ASP), movimento criado na Suíça. No plano pessoal, as
coisas complicam-se. No início dos anos 60, Soares viaja cada vez mais para o
estrangeiro e a mulher e os filhos sofrem as ausências. As cartas sofridas da
mulher, Maria Barroso sucedem-se. Em 1965, Humberto Delgado é assassinado com a
sua secretária perto de Badajoz.
Uma brigada da PIDE abate-o em Espanha. Soares
oferece os seus serviços de advogado à viúva, Iva Delgado, o que esta aceita.
Soares forma uma equipa de advogados para esclarecer o caso, em Portugal,
Espanha e Itália e volta a ser detido pela PIDE. É cada vez mais vigiado. O
líder da ASP viaja por toda a Europa. Estabelece contatos com partidos
socialistas e sociais democratas das democracias europeias e visita o bloco de
Leste. As viagens à Checoslováquia, Cuba e Jugoslávia confirmam nele a
ideia de que o ideal comunista não era, na prática, o que a teoria prometia.
Em
1967, bate-lhe à porta do escritório de advogados um jornalista do jornal
britânico ‘Daily Telegraph’. Estava a investigar o famoso caso das ‘Ballets
Rose’, em que figuras do vulto do regime eram acusadas de frequentar uma casa
de meninas onde tinham sexo com menores. O artigo faz escândalo, ao revelar o
encobrimento do caso pelo regime. Soares é detido, acusado de divulgar notícias
falsas e de pôr em casa a moralidade de Salazar. É o período mais duro que
passa na prisão. Fica isolado durante três meses em Caxias, sem falar com
ninguém. Passa o natal sozinho, sem um livro, um jornal, uma palavra. Solto em
março de 1968, mal tem tempo de gozar a liberdade.
O Conselho de Ministro
decide a sua deportação para São Tomé e Príncipe, sem esperar pela acusação ou
julgamento. Soares chega à ilha de São Tomé com um fato de inverno, para
enfrentar um calor de 40 graus. Mas Soares mostra mais uma vez a sua tremenda
capacidade de adaptação. Estabelece-se numa pensão de São Tomé. Poucos dias
depois chega Maria Barroso e mudam-se para um apartamento em frente ao mar. O
nervosíssimo chefe da PIDE local empenha-se em seguir todos os passos do
ilustre deportado, que depressa conquista simpatias. Recebe vários jornalistas
estrangeiros, desdobra-se em entrevistas. Mesmo a milhares de quilómetros de
Lisboa, Soares continua a ser um incómodo. Da permanência de Soares em São
Tomé, sobram episódios anedóticos.
Como a vez em que o deportado sai com o
velho e gasto Volkswagen que comprou em quinta mão e a máquina se recusa a
arrancar. Soares não está com meias medidas e resolve pedir boleia ao PIDE
que o seguia nesse dia. Este fica tão estupefacto que o deixa entrar no carro,
e leva Soares ao destino pretendido. Entretanto, o cenário muda em Lisboa. Em
Agosto de 1968, Salazar cai da cadeira no Forte de Santo António, no Estoril, e
nunca mais recupera a saúde. Marcelo Caetano assume a Presidência do Conselho
de Ministros e a primavera marcelista dá a ilusão de mudança. Soares é
autorizado a deixar São Tomé em novembro.
Chega a Lisboa na madrugada dos dia
13. Às cinco da manhã, há uma grande festa na casa do Campo Grande. Soares,
então com 43 anos, abraça os filhos e o pai, que daí a poucos dias completa 90
anos.
IV - Do exílio ao 25 de Abril
Fora do país, fundou o PS e correu mundo, para desespero da família Em 1969, a oposição aparece dividida às eleições para a Assembleia Constituinte, as primeiras que se realizam no País depois de Marcelo Caetano substituir Salazar na Presidência do Conselho de Ministros.
IV - Do exílio ao 25 de Abril
Fora do país, fundou o PS e correu mundo, para desespero da família Em 1969, a oposição aparece dividida às eleições para a Assembleia Constituinte, as primeiras que se realizam no País depois de Marcelo Caetano substituir Salazar na Presidência do Conselho de Ministros.
O
partido do Regime, a União Nacional, ganha com 86 por cento dos votos e fica
com todos os assentos parlamentares. Mas não é essa derrota, já esperada, que
desanima Soares. O líder da Acção Socialista Portuguesa empenhara-se na
candidatura da CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática), mas ficou
muito atrás das Comissões Democráticas Eleitorais (CDE) onde estavam vários
outros oposicionistas, como o futuro presidente Jorge Sampaio. Desiludido,
Soares parte, em 1970, para uma solitária viagem ao continente americano. Uma
viagem que tem custos pessoais.
O sogro tinha morrido há um mês a sogra luta
com um contra um cancro. A saúde do pai também se revela precária. Maria de
Jesus Barroso vê com maus olhos a viagem e isso mesmo diz ao marido numa carta
que depois seria publicada no livro "Cartas a Mário Soares", de 2012.
"Tinhas mesmo de fazer esta viagem, senão morrias. Tem paciência, sou
muito tua amiga, mas a verdade é que tu nunca medes as consequências dos teus
atos - tens um capricho e tens de o satisfazer, doa a quem doer, custe o que
custar".
Soares vai para Paris, onde a mulher lhe diz que a DGS - sucessora
da PIDE - abriu contra ele um novo processo, sob a grave acusação de
Soares defender a dissolução da pátria. Retirado para Itália, onde escreve o
grosso do livro ‘Portugal Amordaçado’, recebe aí a vista da mulher e dos
filhos. Estes são informados durante a viagem de uma notícia trágica e
comunicam-na a Mário Soares já em Itália: o pai deste, João Soares, morre em
Lisboa, a 31 de julho de 1970, aos 91 anos. Apesar de saber que se arrisca a
ser preso, Soares embarca em Roma com destino a Lisboa. Assiste ao funeral do
pai e é informado pela PIDE que tem quatro horas para deixar o país, senão é
preso e deportado "para um sítio mais longe" (provavelmente Timor,
apura o oposicionista).
Soares sai de Portugal de carro com a mulher e os
filhos, Isabel e João. Atravessam Espanha num Morris 1300 e conduzem até
França. Estava, oficialmente, banido do país. Soares fixa-se em Paris e começa
a dar aulas na Universidade de Vincennes, nos arredores de Paris e também em
Rennes, na Bretanha. Mais tarde, chega a lecionar na prestigiada Sorbonne. Em
1972, sai em França o livro ‘Portugal Amordaçado’, que parte da sua experiência
pessoal para revelar as ideias de Soares para a mudança de regime em Portugal.
O livro é recebido com interesse em França e lido às escondidas em Portugal. Em
Paris, Soares desdobra-se em contatos com os oposicionistas no exílio. Membro
da Internacional Socialista, viaja por toda a Europa e pela América Latina. E
vai também a Moscovo, a convite das autoridades soviéticas. Em Abril de 1973, a
ASP reúne na Alemanha com filiados vindos de Portugal e de várias partes da
Europa. A 19 de Abril é lavrada a ata da fundação do Partido Socialista num
hotel da estância termal de Bad Munstereifell. Estavam presentes 27 delegados.
E é na Alemanha, onde estava com Maria de Jesus Barroso, Tito de Morais e Ramos
da Costa para se reunir com o líder socialista Willy Brandt que, um ano depois,
Soares sabe do golpe militar que tem lugar a 25 de Abril de 1974.
V - Entre o Governo e a rua
Os dias loucos de um político após a revolução de abril Mário Soares chega a Lisboa no dia 28 de abril de 1974. Desembarca no chamado ‘comboio da liberdade’, que trouxe para a estação de Santa Apolónia, em Lisboa, dezenas de exilados ilustres. A 1 de Maio, Soares junta-se ao líder comunista Álvaro Cunhal, que chegara entretanto a Lisboa de avião, para o primeiro grande comício após a revolução.
V - Entre o Governo e a rua
Os dias loucos de um político após a revolução de abril Mário Soares chega a Lisboa no dia 28 de abril de 1974. Desembarca no chamado ‘comboio da liberdade’, que trouxe para a estação de Santa Apolónia, em Lisboa, dezenas de exilados ilustres. A 1 de Maio, Soares junta-se ao líder comunista Álvaro Cunhal, que chegara entretanto a Lisboa de avião, para o primeiro grande comício após a revolução.
O povo saiu à rua em Lisboa e em várias cidades do
país para celebrar a liberdade recém-conquistada e Soares é uma das vozes que
se faz ouvir no estádio da FNAT (hoje estádio 1º de Maio, em Lisboa). O tom é
ainda de total esquerdismo revolucionário: "O fascismo foi vencido, mas as
bases sociais de suporte do fascismo continuam intactas. É o poder económico,
são os bancos, são os monopólios, são os corruptos desse baronato
político-corporativo, que são em Portugal os agentes do imperialismo do estrangeiro",
grita Soares à multidão. Soares não demora muito a assumir funções em vários
dos governos provisórios que se sucedem naqueles tempos de agitação política.
A
15 de maio, assume a importante pasta do Ministério dos Negócios Estrangeiros
do I Governo Provisório, liderado por Palma Carlos. No Governo estão
representados três partidos, o PS, o PCP de Álvaro Cunhal e o recém-formado
PPD, liderado por Francisco Sá Carneiro. Soares mantém-se à frente do MNE até
março de 1975, continuando nessas funções nos três primeiros governos
provisórios, que procuravam dar alguma ordem ao país saído da revolução.
O
líder socialista assume o mais incómodo dos assuntos que o novo regime tem de
resolver - o fim da guerra colonial, a independência de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau,
e também de Cabo-Verde e São Tomé e Príncipe, onde a guerra nunca chegou.
Soares assinou a paz com as forças beligerantes, mas o fim dos conflitos teve um efeito brutal. Estima-se que meio milhão de pessoas se viram obrigadas a vir para Portugal entre 1974 e o verão de 1975, abandonando tudo o que tinham em África. Muitos dos ‘retornados’ tinham nascido no Ultramar sem nunca ter visitado a Metrópole. Soares ganhou inimigos para a vida. Defendeu sempre o seu papel, explicando que fez a "descolonização possível". "Salazar é que é o responsável. E culpam-me a mim por fazermos a paz?".
Em clima de profunda agitação
social e política, Soares leva o PS para a rua, desafiando o PCP e outras forças
mais à esquerda. Temia-se que o país caísse na órbita soviética e Soares
empenha-se em evitá-lo. Ao mesmo tempo, opõe-se à intenção de Spínola, que
queria reforçar os poderes presidenciais antes da eleição da Assembleia
Constituinte.
Mário Soares defendia que o novo regime devia legitimar primeiro
o poder dos partidos. António de Spínola acaba por se demitir em setembro de
1974, sendo substituído na Presidência da República pelo General Costa Gomes. A
25 de Abril de 1975, o país vai a votos pela primeira vez na era democrática. A
eleição para a Assembleia Constituinte dá ao PS de Soares uma vitória
surpreendente, com quase 38% dos votos e 116 dos 250 deputados. O PPD
(antecessor do atual PSD) fica em segundo com 26% dos votos e 81 deputados,
remetendo o PCP para o terceiro lugar, com 12% dos votos e 30 deputados.
No
‘Verão Quente’ de 1975, o país está a ferro e fogo. Grupos de extrema-esquerda
e extrema direita fazem atentados à bomba, manifestações e contra-manifestações
sucedem-se nas ruas. Soares opõe-se aos governos provisórios liderados por
Vasco Gonçalves, próximo das posições do PCP. O líder do PS demite-se do cargo
de ministro sem pasta do IV Governo Provisório e faz oposição ao "gonçalvismo". O comício da Fonte Luminosa, em Junho de 1975, mostra a capacidade do PS de levar multidões à rua. A 6 de novembro, Soares e Cunhal travam um debate histórico na RTP. Durante mais de três horas, os líderes do PS e do PCP trocam acusações. Soares acusa Cunhal de querer instaurar um estado comunista em Portugal, contra a vontade do povo.
Cunhal exalta-se, repete
várias vezes uma frase que fica na memória: "Olhe que não, olhe que
não". O movimento militar de 25 de Novembro de 1975 encerra o chamado
Processo Revolucionário em Curso (PREC), período em que o país vive à beira de
uma guerra civil. Sob a liderança do então coronel Ramalho Eanes, os militares
do comandos neutralizam as tropas afetas ao Partido Comunista, que estariam na
iminência de provocar um golpe de Estado. Cai o executivo liderado por Vasco
Gonçalves.
O regime entra numa nova era de normalização democrática. Soares,
que mobilizara apoios internacionais, incluindo o do embaixador americano em
Lisboa, Frank Carlucci, está do lado dos vitoriosos. A 25 de Abril de 1976, o
PS tem uma nova vitória, nas primeiras eleições legislativas do novo regime.
Mário Soares sonhava com uma maioria absoluta, mas tem de se contentar com 35%
dos votos, uma descida em relação ao escrutínio para a Constituinte. Soares
tenta uma coligação com o PPD, então liderado por Pinto Balsemão, mas este recusa.
O PS terá de governar sozinho, em minoria na Assembleia da República. Mas a
formação do primeiro governo constitucional é adiada para depois das eleições
presidenciais. Em junho de 1976, o general Ramalho Eanes é eleito Presidente da
República, o primeiro chefe de estado a ser escolhido por sufrágio universal e
direto após a revolução de 74. O PS apoia o militar, apesar do pouco entusiasmo
de Soares em relação ao homem que acabaria por se tornar um dos seus maiores
rivais políticos. Eanes toma posse a 14 de Julho de 1976 e dá posse a Soares
como primeiro-ministro no dia 23.
O Executivo conta só com nomes do PS e alguns
independentes. Todos sabem que o governo não vai durar muito tempo.
VI -
Governando sobre brasas
Soares governou sempre em minoria. Era mestre na arte de negociar Há episódios que definem uma personalidade. E José Silva Lopes, que foi ministro das Finanças em dois Governos Provisórios e Governador do Banco de Portugal durante os anos de brasa do pós 25 de Abril gostava de contar uma história que viveu quando Mário Soares era primeiro-ministro. O País estava à beira da bancarrota e, a dado momento, a situação torna-se insustentável.
Soares governou sempre em minoria. Era mestre na arte de negociar Há episódios que definem uma personalidade. E José Silva Lopes, que foi ministro das Finanças em dois Governos Provisórios e Governador do Banco de Portugal durante os anos de brasa do pós 25 de Abril gostava de contar uma história que viveu quando Mário Soares era primeiro-ministro. O País estava à beira da bancarrota e, a dado momento, a situação torna-se insustentável.
Numa
das muitas noites em que a brutalidade dos números o deixava desconcertado,
Silva Lopes liga a Soares. Explica-lhe que o País só tem reservas cambiais para
mais dois dias. A resposta fica nos anais da política portuguesa. "Ó
homem, são duas da manhã! Se o problema é assim tão grave, tenho de ter a
cabeça fresca. Deixe-me dormir! Amanhã logo se vê o que podemos fazer".
Uma resposta que diz muito sobre o político Soares. Pouco dado a estudar
dossiês ou a mergulhar em questões técnicas complexas, mas lesto a decidir e a
seguir o seu instinto político.
Entre 1976 e 1985, Soares lidera três governos
(de 1976 a 78 e de 1983 a 1985). Sempre em minoria, faz acordos com o CDS, com
o PPD (depois PSD), engole o Bloco Central com Mota Pinto, faz o que pode para
se manter no poder. É contestado dentro do seu próprio partido, tem de
enfrentar uma nova geração que quer o poder. Encontra no Presidente da
República um adversário, que decide a queda do II Governo Constitucional e
avança com vários executivos de iniciativa presidencial. Nas legislativas de
1979, o PS perde para a coligação PSD/CDS/PPM, liderada por Sá Carneiro, que forma
Governo. Quando Sá Carneiro morre na queda do avião em Camarate, em 1980, Há
novas eleições e Soares volta a perder. Resta-lhe fazer oposição ao novo
Governo, liderado por Francisco Pinto Balsemão. Em 1983, o PS volta a ganhar
eleições e Soares volta a ser primeiro-ministro num governo que junta PS e PSD,
então liderado por Mota Pinto.
O Bloco Central tem de enfrentar a grave crise
financeira do País e, tal como em 1977, Soares vê-se obrigado a pedir a
intervenção do FMI para tirar Portugal da bancarrota. Em clima de
descontentamento geral perante a austeridade imposta, com Mota Pinto fora do
Governo (que morreria pouco depois de doença súbita), o executivo treme quando
um tal de Aníbal Cavaco Silva vai ao congresso da Figueira da Foz, em maio de
1985, fazer a rodagem do seu novo Citroën e sai de lá eleito líder do PSD.
Cavaco Silva estava muito longe de ser um entusiasta do Bloco Central e as
negociaç
ões que enceta com Soares para se juntar ao Governo fracassam. Até por
episódio anedótico: Cavaco diz à imprensa que se vai reunir com Soares no Largo
do Rato num encontro "de trabalho, não de flores". ‘Picado’, Soares
manda encher a sede do PS de ramos de flores, desde a entrada até à sala de
reuniões. Cavaco entende a piada como uma falta de respeito. Nasce mais uma
inimizade que fica para a vida. Oficializado o fim prematuro do Governo, um do
últimos atos de Mário Soares como primeiro-ministro é assinar o acordo de
adesão de Portugal e Espanha à CEE, antecessora da atual União Europeia, no
Mosteiro dos Jerónimos. Era a concretização de um projeto em que Soares se
tinha empenhado desde os primeiros tempos após a revolução de 74. Em 1985,
Soares tem a popularidade nos mínimos. Mas lança-se numa corrida que, apesar de
preparar há muito, parecia condenada ao fracasso - bater-se pela Presidência da
República.
O próprio admite a delicadeza do momento, numa entrevista que deu
mais tarde a Joaquim Vieira para a biografia ‘Mário Soares, Uma Vida’:
"Como o Presidente era Eanes, em quem não tinha nenhuma confiança, eu
estava bloqueado pelos dois lados. Não podia estar pior".
VII - Soares é
Fixe
Campanha de 1986 começou em depressão, acabou em euforia Quando Soares se lança na corrida para as eleições presidenciais de 1986, as circunstâncias jogam todas contra si. Cavaco Silva tinha ganho as eleições legislativas de 1985, iniciando o caminho que o haveria de levar a duas maiorias absolutas de governos do PSD. O candidato presidencial da direita é Diogo Freitas do Amaral, até há pouco líder do CDS.
Campanha de 1986 começou em depressão, acabou em euforia Quando Soares se lança na corrida para as eleições presidenciais de 1986, as circunstâncias jogam todas contra si. Cavaco Silva tinha ganho as eleições legislativas de 1985, iniciando o caminho que o haveria de levar a duas maiorias absolutas de governos do PSD. O candidato presidencial da direita é Diogo Freitas do Amaral, até há pouco líder do CDS.
À esquerda, o campo está minado. Francisco Salgado
Zenha - amigo íntimo de Soares e fundador, com ele, do PS - está na
corrida. Maria de Lurdes Pintassilgo, a única mulher que - por iniciativa
do Presidente Eanes - tinha liderado um governo em Portugal granjeava muitas
simpatias. O PCP apresenta à disputa eleitoral Ângelo Veloso, que viria a
desistir antes das urnas a favor de Salgado Zenha, que também reúne o apoio do
PRD, o partido que nasceu da (pouco) discreta iniciativa do ainda presidente
Ramalho Eanes. O PS decide apoiar Soares, uma desilusão para Zenha, que nunca
perdoará a traição do amigo que tantas vezes apoiara nas horas mais difíceis.
As relações entre ambos esfriam definitivamente, uma mágoa que Soares guardará
para sempre. Antes de começar a campanha eleitoral, as sondagens não davam mais
de 5% das intenções de voto a Mário Soares. Mas a chamada ‘campanha alegre’
traz o melhor do animal político que Soares sempre foi. A rua é o seu
território. Afinal é o Mário, o ‘Marocas’, o ‘Bochechas’ que está ali a
distribuir beijos e abraços, o homem que pega num anão e o beija, pensando
tratar-se de uma criança. ‘Soares é fixe’, é um dos lemas da campanha que se
cola ao candidato. O ponto de viragem surge numa ação de rua na Marinha Grande.
Os operários da indústria vidreira estão em luta, manifestantes afetos ao PCP
recebem Soares e a sua comitiva com hostilidade.
Um segurança é ferido, as
câmaras de televisão filmam-no a sangrar, o próprio Soares leva uma paulada. A
perceção sobre o candidato muda naquele dia. Afinal é o herói de abril que
acaba de ser sovado, mas não vira a cara à luta. Os apoiantes animam-se, a
campanha ganha novo fôlego... Na televisão, Soares trava um tenso debate com
Freitas do Amaral. Mais racional, o candidato centrista passa uma imagem de
excessiva frieza perante o emocional Soares.
Vota-se a 26 de janeiro de 1986.
Soares ganha à esquerda reunindo 25% dos votos, contra 20% de Salgado Zenha e
7% de Lourdes Pintassilgo. Freitas ganha, destacado, com uns confortáveis 46%
dos votos, muito próximo da maioria que o poderia levar a Belém. Na segunda
volta, Álvaro Cunhal faz o inesperado. Apesar da desconfiança que tem no líder
socialista, faz um apelo inédito ao eleitorado comunista: "Se for preciso
tapem a cara [de Soares no boletim de voto] com uma mão e votem com a
outra". A 16 de fevereiro, os portugueses voltam à urnas. E Soares ganha,
à tangente. Consegue 51,1 por centos dos votos, contra 48,8 de Freitas do
Amaral. A eleição decide-se por pouco mais de 260 mil votos, a menor diferença
de sempre. Mário Soares torna-se o primeiro civil a chegar ao Palácio de Belém
desde o 25 de Abril de 1974.
VIII - Presidente em luta contra o Cavaquismo
Soares quis liderar em Belém a luta contra os governos laranja Os dez anos que Mário Soares passa em Belém, dividem-se em fases bem distintas. Eleito em 1986, o Presidente vê-se obrigado a conviver com um rival político que desconsidera, desde a primeira hora. O primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva é, para Soares, um tecnocrata sem passado e sem carisma. Soares subestima-o.
Soares quis liderar em Belém a luta contra os governos laranja Os dez anos que Mário Soares passa em Belém, dividem-se em fases bem distintas. Eleito em 1986, o Presidente vê-se obrigado a conviver com um rival político que desconsidera, desde a primeira hora. O primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva é, para Soares, um tecnocrata sem passado e sem carisma. Soares subestima-o.
Ainda assim, não o
deixa cair. Em abril de 1987, o PRD apresenta uma moção de censura ao Governo.
Esta é aprovada pela maioria dos deputados - com os votos do PS e do PCP.
Soares tem a possibilidade constitucional de promover um acordo à esquerda que
levasse à formação de um novo Governo, mantendo o Parlamento em funções. Mas,
ao contrário do que pediam muitos dos seus amigos e apoiantes, Soares decide
dissolver a Assembleia da República e convocar novas eleições legislativas.
Talvez Soares não esperasse o resultado que sai do novo escrutínio.
Cavaco
Silva alcança uma vitória esmagadora. Consegue 50,2% dos votos e o PSD fica com
148 dos 250 deputados. É a primeira maioria absoluta da democracia. O PRD, que
tinha provocado a queda do governo, sofre uma hecatombe, ao passar de 45 para 7
deputados. O PS, liderado por Vítor Constâncio, até consegue reforçar a sua
votação e passa de 57 para 60 deputados. Mas longa será a travessia dos
socialistas. Jorge Sampaio sucede a Constâncio em 1989, mas não sobrevive a novo
desaire eleitoral, com a segunda maioria absoluta de Cavaco, em 1991. O PS só
regressa ao poder em 1995, pela mão de António Guterres.
Obrigado à convivência
com Cavaco, Soares atua em Belém com o pragmatismo que sempre o caracterizou. O
presidente percebe que é na rua que ganha simpatias e cria a figura das
"presidência abertas", que o levam a todo o país. Desdobra-se em
viagens de Estado ao estrangeiro, revela verdadeira vocação para ser "o
presidente de todos os portugueses". Tanto que, terminado o primeiro
mandato, Cavaco Silva toma a inédita decisão de o PSD não apoiar qualquer
candidato contra Soares.
É Basílio Horta, então líder do CDS, quem assume o
dever de representar a direita, mas é esmagado nas urnas por Soares, que ganha
o plebiscito com uns esmagadores 70% dos votos, o melhor resultado alguma vez
conseguido por um candidato presidencial. O segundo mandato seria marcado por
uma mudança drástica na relação entre Belém e São Bento. Soares aposta no
desgaste do Governo e não perde uma ocasião de criticar, com mais ou menos
subtileza.
Mas a poucos escapam o verdadeiro alcance de iniciativas como o
congresso "Portugal, que futuro?", em 1993, ou a Presidência Aberta
na Área Metropolitana de Lisboa, também no mesmo ano, que o Presidente tudo faz
para sublinhar os defeitos da "política do betão". Cavaco haveria de
sair de cena em 1995. Agastado com anos de combate contra Soares, a oposição e
os próprios membros do seu partido - a quem Cavaco nunca deu a atenção que
tantos reclamavam - deixa a Fernando Nogueira a ingrata tarefa de defender o
seu legado contra a popularidade crescente de António Guterres.
O resultado é
um estrondosa vitória dos socialistas, que falham a maioria absoluta por uma
nesga. Soares tem ainda uma segunda vingança. Em 1996, Cavaco apresenta-se à
corrida para a sua sucessão e perde, inapelavelmente, para Jorge Sampaio, logo
à primeira volta. Mário Soares termina o seu segundo mandato em Belém com a
popularidade em alta. Parte de Belém com o projeto de viajar com a mulher
durante largos meses. Mas todos sabem que a vida política de Soares está longe
de ter chegado ao fim.
IX - Dias negros em Belém
Um drama pessoal e um escândalo político abalaram o Presidente A Presidência da República revela Soares no fulgor da sua vida política, mas os oito anos que passa em Belém são marcados por grandes dissabores políticos e pessoais. A palavra Emaudio é a espinha no currículo político de Soares.
Um drama pessoal e um escândalo político abalaram o Presidente A Presidência da República revela Soares no fulgor da sua vida política, mas os oito anos que passa em Belém são marcados por grandes dissabores políticos e pessoais. A palavra Emaudio é a espinha no currículo político de Soares.
A empresa, constituída no início do
mandato de Mário Soares em Belém era uma sociedade constituída com capitais de
fundações ligadas ao PS e que tinha por finalidade constituir um novo grupo de
comunicação social. O objetivo principal seria o de criar o primeiro canal
privado de televisão em Portugal. Soares sempre negou qualquer envolvimento no
projeto, mas os acontecimentos tornam essa tese difícil de sustentar.
No início
de 1986, o então empresário de televisão italiano Silvio Berlusconi (fundador
do império mediático Mediaset e depois primeiro-ministro de Itália) visitou
Soares em Belém. Conta Joaquim Vieira na sua biografia de Mário Soares que
Berlusconi e o Presidente discutiram longamente as possibilidades que se abriam
com a criação de um novo canal privado em Portugal. Mas o projeto empresarial,
que tinha entre os principais dirigentes Almeida Santos e João Soares, filho do
presidente, não avançaria com Berlusconi. A sociedade Emaudio é constituída
formalmente em janeiro de 1987. O principal investidor era a Fundação para as
Relações Internacionais, dirigida por Rui Mateus.
Um nome que se tornaria maldito
para Soares. Colaborador próximo do líder socialista durante décadas, acabou
por ser rudemente afastado. E ‘vingou-se’ escrevendo ‘Contos Proibidos -
Memórias de um PS Desconhecido’ - livro em que pôs a nu os esquemas do PS para
se financiar. Mas isso seria bem mais tarde, em 1996. Nove anos antes, Mateus
estava no coração do projeto Emaudio.
Depois de Berlusconi, o alvo seguinte é o
magnata australiano da comunicação Rupert Murdoch, ainda hoje dono de meios
como o tablóide ‘The Sun’ ou o cadeia de TV Fox. Também ele é recebido por
Mário Soares em Belém, onde discutem o projeto da nova televisão
portuguesa. Há ainda um terceiro interveniente. Robert Maxwell outro magnata
dos media e rival de Murdoch também vem a Belém.
E será este a celebrar um acordo
com a Emaudio, que tinha inicialmente como objeto de investimento a televisão
de Macau. A TDM - Televisão pública de Macau - estava em processo de
privatização e interessava ao media internacionais. Porque do pequeno
território português era possível fazer chegar as emissões à vizinha Hong Kong,
uma das grandes capitais financeiras da Ásia. E a Emaudio seria a ‘muleta’ para
entrar nessa operação. Entretanto, Soares nomeia Carlos Melancia, um homem
ligado à Emaudio, para Governador de Macau. E tudo se precipita por causa de
outro negócio, o da construção do novo aeroporto de Macau, em que a Emaudio
também estava envolvida.
A empresa alemã Weidleplan quer entrar na corrida e
faz um pagamento de 50 mil contos (250 mil euros), recebido pela Emaudio, para
facilitar o acesso ao negócio - isto segundo a versão de Rui Mateus, já que
Soares negou sempre qualquer envolvimento no assunto. A Weidleplan fica de fora
no concurso de adjudicação da obra do aeroporto. Mateus entra em rota de
conflito com Soares, sendo a Fundação para as Relações Internacionais esvaziada
de funções e capital. No verão de 1989, Mateus larga a bomba.
Faz chegar ao
jornal ‘O Independente’ o famoso fax da Weidleplan dirigido ao governador
Carlos Melancia, em que os alemães pedem a devolução do dinheiro pago. O
escândalo ameaça o Presidente, que deixa cair Melancia, seu amigo e sua escolha
pessoal para governar Macau. É forçado a demitir-se. Acusado de corrupção
passiva, Melancia inicia uma longa travessia no deserto, que só se resolveria
anos depois, com a sua absolvição na justiça. Soares defendeu publicamente a
sua inocência, mas Melancia acabou por ser a grande vítima política do caso.
Na
corrida para a reeleição presidencial, em 1991, o candidato da direita, Basílio
Horta, tentou colar Soares ao escândalo, mas a estratégia não resultou. Soares
vence com uns confortáveis 70% dos votos, marca inédita na democracia
portuguesa. Filho às portas da morte Em Setembro de 1989, João Soares parte
para Angola e visita Jonas Savimbi na base da UNITA na Jamba, na companhia dos
deputados Rui Gomes da Silva (do PSD, hoje mais conhecido como comentador de
futebol afeto ao Benfica) e Nogueira de Brito, do CDS. O Cessna em que seguem
despenha-se na floresta e o filho do presidente fica gravemente ferido.
Quando
Soares e Maria Barroso são informados, durante a madrugada, o prognóstico
clínico de João Soares era muito reservado. Soares tem visitas de Estado
marcadas para a Hungria e para a Holanda, e mantém as deslocações previstas.
Maria Barroso viaja para a África do Sul, para onde João é transferido. Soares
vai sabendo notícias do filho pelo telefone. Parte depois para Pretória, onde
João vai dando sinais de melhoria. O episódio marca o reencontro de Maria
Barroso com a fé católica, Soares permanecerá agnóstico até ao fim. João
recupera dos ferimentos. Sobrevive quase miraculosamente, após várias
cirurgias, vencendo o pessimismo dos primeiros diagnósticos.
Mas nem em
circunstâncias tão dramáticas Soares deixa de fazer política. A África do Sul
vive um momento histórico, o apartheid está à beira do fim e especula-se que
Mandela poderá ser libertado a qualquer momento. Soares encontra-se como chefe
de governo, De Klerk, o homem que haveria de abrir portas ao fim da segregação
racial. Soares aconselha-o a libertar Mandela, puxando o exemplo falhado de
Marcelo Caetano, que caiu por não saber reformar a ditadura que herdara de
Salazar. Soares é dos primeiros a saber da intenção de De Klerk de libertar Mandela, que acontece poucos meses depois.
XX - Há sempre mais uma batalha
A vida política de Mário Soares não acabou depois da Presidência Quando Mário Soares deixa o Palácio de Belém, em 1996, tem 71 anos. Deixa várias promessas: "Não desejo fazer mais política partidária, nem tenciono aceitar quaisquer outros cargos de tipo estritamente político, no plano nacional ou internacional.
A vida política de Mário Soares não acabou depois da Presidência Quando Mário Soares deixa o Palácio de Belém, em 1996, tem 71 anos. Deixa várias promessas: "Não desejo fazer mais política partidária, nem tenciono aceitar quaisquer outros cargos de tipo estritamente político, no plano nacional ou internacional.
Quem foi, durante dez anos, Presidente da República, com a ampla
aceitação que lhe foi conferida pelos seus concidadãos, não deve aspirar,
politicamente, a mais nada. É uma regra de ouro, de que não me afastarei".
As câmaras de televisão mostram-no a sair de Belém com Maria Barroso, pronto
para "uma viagem prolongada" a dois, que nunca tinham conseguido
fazer. A promessa não resistiu muito tempo.
A Fundação Mário Soares, criada em
1991, só arranca realmente com o fim do segundo mandato em Belém, mas Soares
não queria ser um mero Conselheiro de Estado, remetido ao papel de opinar
amiúde sobre o estado da nação. A oportunidade de voltar à arena política
aparece em 1999. António Guterres liderava um governo mal cotado nas sondagens
e temia um desaire nas eleições europeias. Insiste com Soares para ele ser o
cabeça de lista a Bruxelas. E Soares acede.
Mas fá-lo com um objetivo concreto,
o de ser eleito Presidente do Parlamento Europeu, cargo de prestígio internacional
que seria o corolário de uma carreira política brilhante. Mas estava tudo
dependente de os socialistas europeus elegerem mais deputados que o PPE
(coligação de centro-direita onde se inscrevem o PSD e o CDS). Os socialistas
falham a maioria. Cabe ao PPE indicar o novo Presidente do Parlamento Europeu e
Soares não esconde a desilusão.
Quando a francesa Nicole Fontaine assume o
cargo, Mário Soares diz que a francesa tem "um discurso de dona de
casa". A ‘boutade’ é mal recebida. Soares passa por chauvinista e por
ressabiado. Mas cumpriu os cinco anos de mandato com espírito aberto.
"Gostei muito, aprendi muita coisa", diria sobre a experiência. Nova
corrida a Belém
Em 2004, Soares completa 80 anos de vida, e a família
organiza-lhe um jantar de homenagem. Mas o que começa por ser uma celebração em
tom familiar depressa escala como o embrião de mais uma batalha. Apesar de
Soares voltar a prometer que a política é, para ele, um assunto encerrado, sabe
que as coisas podem não ser bem assim. As eleições presidenciais de 2006
dividem os socialistas.
José Sócrates lidera um governo minoritário e não quer
apoiar o seu rival político Manuel Alegre, cuja candidatura se adivinha. Para
Soares, as eleições são a oportunidade de se bater contra Cavaco Silva, o seu
inimigo de estimação. Um apelo demasiado sedutor para o velho guerreiro fugir
ao combate. Contra a opinião de grande parte dos amigos e dos próprios filhos e
mulher, Soares é mesmo apresentado como candidato do PS.
A luta fratricida com
Manuel Alegre vale o corte de relações entre os dois, tanto mais quando se
apuram os resultados: Cavaco Silva ganha à primeira volta, Alegre fica em
segundo, com larga vantagem para Soares, remetido a um humilhante terceiro
lugar. A desastrosa campanha leva à rutura da relação pessoal de Soares com o
sobrinho Alfredo Barroso - seu colaborador próximo de décadas. O último combate
redunda numa derrota total. O esquerdista Curadas as feridas da derrota, nem
por isso Soares adormece o espírito combativo. Torna-se um crítico feroz dos
partidos à direita do PS. Apoia convictamente a liderança de Sócrates e, quando
este cai em 2011.
O governo de Passos Coelho e Portas é um dos seus alvos
diletos. Soares parece cada vez mais próximo de uma visão extrema da esquerda
da qual sempre fugiu quando liderava o PS. Crítico da globalização, abraça o
camarada Lula no Brasil, defende o líder venezuelano Hugo Chávez, é a estrela
do ‘Congresso das Alternativas’, em 2012, que o põe lado a lado com Francisco
Louçã, Carvalho da Silva e outros líderes à esquerda do PS.
As crónicas
semanais que escreve no Diário de Notícias revelam um homem inquieto, cada vez
mais crítico do capitalismo global e dos destinos incertos da União Europeia,
dominada por burocratas e pela ditadura das finanças. Na casa do Campo Grande,
continua a receber os amigos de sempre. A política, sempre a política, domina
as conversas.
Em Janeiro de 2013, Soares sofre uma encefalite. Internado de
urgência aos 88 anos, o seu estado é delicado. Recupera, mas o discurso já não
lhe volta a sair com a fluidez de sempre. A última grande causa pública que
Soares abraça é a defesa de José Sócrates. Quando o antigo primeiro-ministro é
detido, por suspeitas de corrupção, Soares é dos primeiros a visitá-lo na
prisão. Critica ferozmente o processo e os seus protagonistas, chega a dizer a
escrever que o juiz Carlos Alexandre "é melhor que se cuide".
Quando
António Costa faz a sua única visita a Sócrates, na Prisão de Évora, é Mário
Soares quem o acompanha. A 26 de junho de 2015, Soares recebe o golpe mais
duro. Maria de Jesus Barroso cai em casa e fica em coma profundo. Não recupera
do traumatismo sofrido e morre duas semanas depois. Desde então, tornam-se
raras as aparições públicas de Mário Soares. Homenageado pelo Parlamento,
recebe de Ferro Rodrigues, em abril de 2016, o diploma que comemora os 40 anos
da Assembleia Constituinte. Marcelo Rebelo de Sousa promove, em setembro uma
sessão de homenagem, em que Soares, sentado numa cadeira, já não toma a
palavra. Nem ele escapa ao peso irreversível do tempo.
Fonte: CM
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