Justiça
decide que filho ainda pode vir a ser indemnizado por morte do pai. Mistério
envolvendo 30 mortes e alegado tráfico de urânio interceptado pela Mossad
continua por desvendar.
Quando
Joaquim Piló o viu partir da doca de Pedrouços, em Algés, naquela manhã, com 30
homens a bordo, não adivinhava o seu trágico fim, apesar de ter estranhado a
forma como navegava, inclinado para um dos lados.
Fez este mês
de Dezembro 25 anos que o navio de pesca Bolama zarpou para a
sua derradeira viagem. Quis o destino que um quarto de século depois voltasse à
tona o processo judicial que parecia para sempre encalhado nos escolhos da
Justiça: num volte-face surpreendente em relação a decisões
anteriores, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu há três semanas que o filho
de uma das vítimas mortais ainda pode vir a ser indemnizado pela morte do
pai. Isso pode implicar julgar em tribunal um caso que se tornou um embaraço
para vários ministros portugueses, de Durão Barroso a António Vitorino – e
sobre o qual nunca deixaram de pairar suspeitas dignas das melhores teorias da
conspiração.
Segundo essas
teses, o naufrágio de 4 de Dezembro de 1991 teria sido obra dos serviços
secretos israelitas, vulgo Mossad, para impedir que a carga de urânio e
armas vinda de uma ex-república soviética, que o navio transportava de forma
dissimulada, chegasse à Líbia. Um quarto de século depois o Bolama continua
afundado a 130 metros de profundidade, entre o cabo Raso e o cabo Espichel, mas
o caso ganha novos contornos na Justiça portuguesa.
Década e meia
de inércia judicial
Não é comum
ver juízes indignados com a inércia do sistema judicial, e em particular dos
colegas de profissão. Mas foi precisamente isso que sucedeu há alguns dias,
quando três magistrados do Supremo Tribunal de Justiça se mostraram
estupefactos perante o facto de juízes do tribunal cível de primeira instância
terem demorado 15 anos para dizer aos familiares das vítimas mortais que
reclamavam ser indemnizados que se haviam, afinal, enganado no tribunal para o
qual tinham apelado. Consequência? O processo tinha prescrito, por ter passado
demasiado tempo.
O filho de um
arquitecto de 37 anos que morreu no acidente não se conformou, porém, com esta
resposta e recorreu dela. No mês passado o Supremo deu-lhe razão, dizendo que a
Justiça vai mesmo ter de decidir se tem ou não direito a ser indemnizado.
A acção
judicial foi desencadeada pela viúva: o rapaz tinha apenas quatro anos quando o
navio desapareceu. “Ficou à espera de uma resposta que, no entanto, apenas lhe
foi apresentada volvidos 15 anos”, constata o juiz relator do acórdão no
Supremo, Abrantes Geraldes. “Cometeu o erro fatal de se equivocar na porta a
que deveria ter batido para obter o reconhecimento do seu direito [a ser
ressarcida]”, escreve o magistrado. Devido a uma “inércia [dos juízes do
tribunal cível] que perdurou 15 anos”, dizem-lhe que perdeu o direito à
compensação financeira – algo que o Supremo considera gravoso para a Justiça,
uma vez que os familiares desta vítima começaram a sua saga nos tribunais em
1997.
Qualificando
o atraso dos seus colegas de primeira instância como irrazoável e
injustificável, os juízes do Supremo falam mesmo numa violação do princípio
constitucional que consagra – tal como, de resto, a Convenção Europeia dos
Direitos Humanos – que todos têm direito a ver as suas causas judiciais
apreciadas num prazo razoável. “Neste contexto, parece a todos os títulos
ilegítimo (...) que seja negada a apreciação definitiva do direito [do filho do
arquitecto a ser indemnizado]”, escreve Abrantes Geraldes.
Protestos das viúvas e restante família das vítimas mortais duraram vários ano
O queixoso
pede 375 mil euros por danos morais e patrimoniais. Depois da indemnização que
desembolsou na sequência de uma
queixa apresentada no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o Estado
deixou de ser visado neste processo, em que é pedida uma compensação ao
armador, à respectiva seguradora e à empresa que certificou que oBolama se
encontrava em condições de navegar em segurança.
A decisão do
Supremo de mandar realizar o julgamento em primeira instância, para apurar se o
filho do arquitecto deve ou não ser ressarcido da morte de António Alegria,
ainda é passível de recurso. “Não decidimos ainda se iremos recorrer para o
pleno das secções cíveis do Supremo”, explica o advogado José António Ferreira,
que representa alguns daqueles a quem é exigida a compensação. Se não lançarem
mão dessa possibilidade nem fizerem um acordo extrajudicial, o caso baixará ao
Tribunal Marítimo de Lisboa, pelo qual já passou pelo menos uma acção relacionada
com ele.
Depois de o Bolama
se afundar, só as viúvas dos 12 tripulantes conseguiram uma
indemnização fora dos tribunais, de dois mil contos cada uma (cerca de dez mil
euros). Foi paga pelo consórcio luso-guineense proprietário da embarcação. Já
na Justiça as famílias têm visto por regra serem-lhes negadas compensações,
precisamente por ter passado demasiado tempo sobre os acontecimentos.
Um dos donos
era Salvador Caetano
Quando foi
comprado por uma sociedade luso-guineense de que fazia parte o empresário
Salvador Caetano, no início dos anos 90, o arrastão já levava 22 anos de vida
no mar e sofrera alterações de vulto em estaleiros navais, incluindo no do
Seixal. Foi precisamente para testar algumas delas que naquela manhã saiu da
barra de Lisboa, em direcção a um local próximo, onde esperava encontrar pesca.
Com a tripulação seguiam alguns convidados: o genro de Salvador Caetano
convidara na véspera António Alegria para uma almoçarada a bordo. Aos convivas
tinha-se juntado ainda um dinamarquês das suas relações.
Apesar de as
condições meteorológicas e do mar serem boas a saída não foi pacífica, como
relata o jornalista Jorge Almeida num dos dois livros que dedicou ao assunto,
intitulado O Mistério do Bolama – Acidente ou Sabotagem?: a Polícia
Marítima intercepta o navio por não ter sido entregue na capitania nem o rol
dos tripulantes nem outra documentação da praxe. O arrastão acaba por seguir
viagem “em situação irregular”.
“A última
comunicação do Bolama terá sido efectuada cerca das 13h30.
Depois só existe silêncio. Um estranho e absoluto silêncio”, descreve Jorge
Almeida. Nunca foi recebido qualquer pedido de socorro e nenhum dos meios de
salvamento existentes a bordo – “duas balsas salva-vidas, um bote de borracha e
várias bóias” – foi encontrado, relata o jornalista. Todos os passageiros
desapareceram, mas apenas foram encontrados os corpos de oito deles – e sem os
coletes insufláveis vestidos.
Carga
secreta?
Após dez dias
de buscas infrutíferas em águas portuguesas, um avião da Força Aérea e uma
fragata da Marinha rumam a Cabo Verde. A filha de Salvador Caetano havia de
contar mais tarde que fora uma vidente russa que consultou quem lhe assegurou
que era aí que se encontrava o Bolama, tendo transmitido essa
informação às autoridades. Foi por esta altura que começaram a surgir as
notícias que davam conta da carga secreta.
Oficialmente,
o porão iria cheio de electrodomésticos dos pescadores, que teriam Bissau como
destino. Mas ainda hoje há quem continue a acreditar que aquilo que lá havia
eram armas e urânio, como Joaquim Piló. Dirigente de um sindicato de
pescadores, foi dos que mais se bateram para que as famílias das vítimas fossem
indemnizadas. Ainda se recorda dos telefonemas anónimos que recebeu na altura
por causa disso: “Diziam: ‘Põe-te à tabela.’
Só dois meses
após ter desaparecido o navio foi encontrado, pousado direitinho no fundo do
mar. Contraditórias entre si, as peritagens efectuadas nunca permitiram apurar
o que se passou ao certo. Apesar de tudo, provou-se que o Bolama tinha
perdido estabilidade para navegar depois de todas as modificações em estaleiro
a que havia sido sujeito. Avançou-se ainda que teria havido uma avaria
nas válvulas do fundo do arrastão, que não estariam bem
fechadas. Trata-se de um mecanismo que, quando se abre, permite a entrada
instantânea da água.
"Nas
circunstâncias em que se afundou, sem tempo para um aviso de socorro, sem ninguém
ter visto um abalroamento, e tendo caído a direito no fundo do mar, só pode ter
sido uma coisa repentina, como um problema nas válvulas de fundo", aventou
o almirante que participou nas tarefas de localização e identificação do
arrastão, 15 anos mais tarde.
Depois havia
a intrigante questão do buraco oval e picotado no casco do barco, captado por
câmaras subaquáticas. “É até hoje uma das principais bandeiras daqueles que
defendem que por detrás do naufrágio existiu uma acção criminosa. Mas a minha investigação
concluiu que a abertura já existia pelo menos nove meses antes do naufrágio”,
escreve Jorge Almeida no seu livro.
O facto de
nunca ter havido esforços, por parte do Governo, para resgatar o Bolama –
o que poderá ser explicado pelo menos em parte com os custos que isso
implicaria, muito embora os dinamarqueses se tenham oferecido para ajudar a
custear a operação – contribuiu para adensar um mistério que criou uma
incomodidade diplomática: iniciadas quando Durão Barroso tinha a pasta dos
Negócios Estrangeiros e repetidas quando António Vitorino assumiu a pasta da
Defesa, as tentativas do Estado dinamarquês para serem efectuadas mais
diligências no sentido de apurar o sucedido foram infrutíferas. António
Guterres chegou a prometer, na campanha eleitoral para primeiro-ministro, o
apuramento das circunstâncias em que se deu o naufrágio. Na realidade, ninguém
o conseguiu fazer cabalmente até hoje.
Fonte: Público
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