26/03/2016
Momentos
tormentosos como estes que estamos vivendo, desafiam consciências éticas que
vem a público para defender o direito e a democracia contra aqueles que mais
deveriam, ex officio, preservá-la. Vale ler o apelo corajoso de um ex-advogado
da União.
L. Boff
Por que lhes dirijo humilde e respeitosamente a palavra neste gravíssimo
momento em que a preocupação acerca do futuro do País e de suas instituições –
especialmente da magistratura – se encontram em gravíssimo risco?
Explico:
Desde os tempos de estudante de
Direito, e até alcançar o mais elevado grau da advocacia pública brasileira,
conheci e aprendi a admirar e respeitar os juízes e, por meio deles, compartir
a veneração da magistratura.
Antes disso, porém, ainda
criança, respirei o orgulho de meus familiares ao invocarem como exemplo de
magistrado um Juiz Federal de Santos, em São Paulo, Bruno Barbosa Lima, que,
enfrentando a ira da ditadura getuliana, proferiu decisão favorável à Pagu – então
perseguida e hoje reconhecida pela História do Brasil como heroína e precursora
dos direitos das mulheres.
Esse juiz discreto, forte e justo
era meu tio-avô. E – diziam naqueles tempos – pagou amargamente o preço de sua
integridade com a extinção da Vara em que judicava; por isso, com sua numerosa
família e já em idade avançada, teve que recomeçar a vida profissional como
advogado no Rio de Janeiro, sendo acolhido no escritório e na casa de um irmão,
também advogado, Virgílio Barbosa Lima.
Sob a inspiração desse exemplo e
de tantos outros magistrados cuja isenção, equilíbrio e moderação testemunhei
ao longo de quase meio século na advocacia, no magistério e no Ministério
Público Federal, é que me dirijo agora aos juízes do meu País:
Aos que sabem não existir ninguém
acima da lei – muito menos eles mesmos – e ninguém que esteja fora de sua
proteção;
Aos que são plenamente
conscientes de que nenhum juiz pode usurpar competência de outro ou emitir
juízos fora dos processos sob sua responsabilidade;
Aos que não substituem os meios
legais de publicação de seus atos de ofício pela divulgação extralegal,
parcial, escandalosa e seletiva dos mesmos;
Aos que em seus gabinetes quase
anônimos e sufocados pelo invencível acúmulo de processos e de demandas
individuais e coletivas, cumprem o seu dificílimo mister com a isenção, a
serenidade, a firmeza e a modéstia dos sábios e justos;
Aos que labutam incansavelmente
para que tenham curso e cheguem ao fim os processos, sem apressá-los contra uns
e retardá-los contra outros;
Aos que consideram sagrados o
devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa;
Aos que garantem e promovem o
respeito à dignidade humana e aos direitos fundamentais dos cidadãos, zelando
pela integridade física e moral dos jurisdicionados e de suas famílias;
Aos que praticam a justiça como
um verdadeiro sacerdócio;
Aos que abominam a violência e os
linchamentos físicos ou midiáticos e para nenhum deles contribuem direta ou
indiretamente;
Aos que não distorcem a
legalidade para fins alheios à Justiça e com ela incompatíveis;
Aos que não utilizam abusiva,
arbitrária e ilegalmente os instrumentos legais que a sociedade lhes confiou;
Aos que não apontam à execração
pública quem precipitada ou preconceituosamente julgam criminosos antes
mesmo de identificado eventual fato delituoso e da formação da culpa;
Aos que não admitem acusação ou
restrição da liberdade sem um libelo formal e substancialmente válido, apto a
propiciar a qualquer acusado o conhecimento preciso da acusação para que possa
contraditá-la e exercer amplamente o seu inalienável direito à defesa;
Aos que não fazem da magistratura
instrumento de “marketing” político ou de prosperidade econômica;
Aos que não fazem da toga
instrumento de vaidade ou messianismo;
Aos que não se deixam usar como instrumentos
de ódios e facciosismos políticos;
Aos que não permitem que se
transformem os templos da Justiça em cenários de intermináveis novelas com que
se busca em crescente delírio o aumento da audiência e o aplauso das multidões;
Aos que não promovem nem insuflam
conflitos e, em vez disso, dirigem todo o seu esforço e estudo no sentido de
resolvê-los pelos meios adequados e legais em benefício da paz social;
Aos que não prejulgam nem
propagam através da mídia e foros extrajudiciais seus prejulgamentos e
preconceitos, usurpando a competência do juiz natural e constrangendo outros
julgadores;
Aos que não presumem explícita ou
implicitamente que decisões de outros juízes ou instâncias devam ser tão
viciadas quanto as próprias ou orientadas na mesma direção;
Aos que não participam de
reuniões em que se conspira abertamente contra a Constituição e o Estado
Democrático de Direito e se discute a partilha dos proveitos de um golpe
antidemocrático em pleno curso;
Aos que não se fazem partícipes
essenciais na formulação, execução e acompanhamento de táticas e estratégias
visando à destituição de governos e à desestabilização do País;
Aos que não utilizam o cargo para
atacar pessoas e entidades que tenham sido, estão sendo ou poderão vir a ser
partes em processos sob o alcance de sua jurisdição;
Aos que não orientam partes e
grupos em conflito assegurando-lhes antecipadamente o sucesso de investidas
judiciais que conduzem e julgam sem arguir a própria suspeição, mesmo sendo ela
notória;
Dirijo-me, pois, a todos esses
magistrados que, inteiramente dedicados às suas funções e isentos de paixões
políticas, não desejam ver o País mergulhado em convulsão social, nem
comprometida a credibilidade e o respeito devidos à magistratura.
Àqueles, porém, cujos atos,
palavras e condutas extraprocessuais – sobretudo – vêm se revelando tão
inconvenientes à boa e serena imagem da Justiça e à validade de suas próprias
decisões, fica a ponderação: é necessário preservar os atos que tenham
praticado com acerto e justiça e assim devam ser julgados, embora a validade de
algumas de suas passadas e futuras decisões já esteja por eles mesmos
irremediavelmente comprometida.
A eles eu não diria – como o
imortal Zola – “Eu acuso! “ Não é necessário. Seus próprios atos os acusam
flagrantemente.
Embora ninguém seja obrigado a
oferecer provas contra si mesmo, eles o fizeram e insistem em fazê-lo de modo
reiterado. Suas palavras e condutas, registradas indelevelmente nos autos dos
processos e fora deles, além de propagadas pela grande imprensa, constituem um
claro, nítido e substancial corpo do delito da suspeição e do desvio de
finalidade. O que é notório independe de prova – é o princípio jurídico. Para
isso não é necessário sequer invocar a teoria do domínio do fato.
A todo os juízes, porém, que
mesmo na serenidade de seu árduo e profícuo labor cotidiano tudo percebem mas
nada dizem ou fazem fora dos respectivos autos e instâncias, reitero minha
profunda admiração e respeito. Nada mais lhes tenho a dizer. Eles conhecem muito
bem a Constituição e as leis que todos juramos defender.
Assim, neles permaneço confiante,
como neles necessitam ainda e sempre confiar todas as cidadãs e cidadãos
brasileiros.
* Alvaro Augusto Ribeiro Costa - (Advogado, Subprocurador-Geral da
República aposentado, ex- Presidente da Associação Nacional dos Procuradores da
República, ex-Procurador Federal dos Direitos do Cidadão, ex-Advogado Geral da
União)
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