Michael Löwy
Terça, 28 de junho de 2016
O papado
de Francisco continua a alvoroçar o catolicismo e a opinião pública
mundiais, num pontificado que, ao lado da promessa de fomento à “opção pelos
pobres”, tem ousado fazer críticas às engrenagens de um capitalismo em crise em
níveis bem acima do esperado. Para discutir o papel daquele que muitos
consideram o maior líder político da atualidade, o Correio da
Cidadania, 21-06-2016, entrevistou o filósofo franco-brasileiro Michael Löwy, estudioso da Teologia
da Libertação.
“Obviamente, ele pretende levar a
sério o compromisso da Igreja com os pobres, suprimir os vínculos dos bancos do
Vaticano com a máfia e tentar reduzir o poder conservador da Cúria Romana. Sua
tentativa de elaborar uma concepção um pouco mais aberta da família e da
sexualidade foi diluída pelo Sínodo dos Cardeais... Há muitas resistências.
Parece que os setores mais reacionários da Igreja têm uma prece especial sobre Bergoglio:
‘Nosso Pai que está no Céu, ilumine-o ou... Elimine-o’”, pontuou.
Ao mesmo tempo em que reconhece o
papel e importância do novo papado, Löwy contrabalança parte
da visão otimista que existe hoje relativamente às posturas de Francisco.
Não por conta da polêmica em relação à ditadura argentina, mas por ponderar que
a crítica ao capitalismo e aos modos de acumulação fazem parte da tradição da
Igreja. O filósofo faz questão, de toda forma, de ressaltar, que "a
esquerda deve tratar com respeito as convicções religiosas e considerar os
militantes cristãos de esquerda como parte essencial do movimento de
emancipação dos oprimidos. A teologia da libertação nos ensina também a
importância da ética no processo de conscientização e a prioridade do trabalho
de base”.
Na entrevista, Löwy também comenta o encontro do Papa em
Havana com o patriarca Kiril, líder da Igreja Ortodoxa russa, e
avalia a possibilidade de união entre as três grandes religiões monoteístas
frente ao capitalismo, entre outras observações que podem ser lidas na íntegra
a seguir.
Eis a entrevista.
Quem é Papa Francisco? O que
pretende?
Gostaria, antes de responder sua
pergunta, de homenagear a memória do fundador do Correio da Cidadania,
meu querido amigo e companheiro de lutas Plínio de Arruda Sampaio, um cristão socialista
comprometido com a luta do povo brasileiro por sua emancipação, um adversário
intransigente da ditadura militar, do latifúndio, do imperialismo e do perverso
sistema capitalista. Sua vida foi um exemplo de coerência ética e política, de
dignidade e de coragem.
Jorge
Mario Bergoglio, o Papa Francisco, não era considerado um
homem de esquerda. Seu comportamento durante a ditadura militar argentina é um
exemplo de "pecado por omissão": não apoiou e tampouco se opôs ao
regime. Não é, portanto, surpreendente que tenha sido eleito Pontifex
Maximum pelo mesmo conclave que havia eleito Ratzinger - Bento XVI - pouco tempo antes.
Entretanto, apenas eleito, surpreendeu
por uma sucessão de iniciativas corajosas, a começar pela visita à Lampedusa, para denunciar o tratamento dado
pela Europa aos refugiados (muçulmanos em sua maioria). Em relação à teologia
da libertação, sua atitude é radicalmente distinta da dos dois pontífices
anteriores: Gustavo Gutierrez foi convidado ao Vaticano e o
processo de canonização de Monsenhor Romero, aberto. Se lemos
atentamente as Encíclicas de Bergoglio, percebe-se a influência de
uma corrente importante do catolicismo da Argentina: a teologia da libertação
não-marxista, representada por pensadores como Juan Carlos Scannone.
Obviamente, ele pretende levar a
sério o compromisso da Igreja com os pobres, suprimir os vínculos dos bancos do
Vaticano com a máfia e tentar reduzir o poder conservador da Cúria Romana. Será
que conseguirá? Sua tentativa de elaborar uma concepção um pouco mais aberta da família e da sexualidade foi diluída pelo
Sínodo dos Cardeais... Há muitas resistências. Parece que os setores mais
reacionários da Igreja têm uma prece especial sobre Bergoglio: "Nosso Pai
que está no Céu, ilumine-o ou... Elimine-o".
A encíclica Laudato
Si ataca frontalmente o sistema capitalista. O que isto significa
vindo de um Papa?
Bergoglio não é
marxista e a palavra “capitalismo” não aparece na Encíclica. Mas fica muito
claro que para ele os dramáticos problemas ecológicos de nossa época resultam
das “engrenagens da atual economia globalizada”, engrenagens que constituem um
sistema global, “um sistema de relações comerciais e de propriedade
estruturalmente perverso”.
Quais são, para Francisco, estas características “estruturalmente
perversas”?
Antes de tudo, é um sistema no qual predominam “os interesses
ilimitados das empresas” e “uma discutível racionalidade econômica”, uma
racionalidade instrumental que tem por único objetivo aumentar o lucro. Para o
Papa, esta perversidade não é própria de um país ou outro, mas de "um
sistema mundial, onde predominam a especulação e o princípio de maximização do
lucro, e uma busca de rentabilidade financeira que tende a ignorar todo o
contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e o meio ambiente. Assim, se
manifesta a íntima relação entre degradação ambiental e degradação humana e
ética".
A obsessão do crescimento
ilimitado, o consumismo, a tecnocracia, o domínio absoluto da finança e a
divinização do mercado são outras características perversas do sistema. Em sua
lógica destrutiva, tudo se reduz ao mercado e ao “cálculo financeiro de custos
e benefícios”. Mas sabemos que “o meio ambiente é um desses bens que os
mecanismos de mercado não são capazes de defender ou de promover
adequadamente”. O mercado é incapaz de levar em conta valores qualitativos,
éticos, sociais, humanos ou naturais, isto é, “valores que excedem cálculos”.
O poder “absoluto” do capital financeiro especulativo é um aspecto essencial do
sistema, como revelou a recente crise bancária. O comentário da Encíclica é
contundente: “a salvação dos bancos a todo custo, fazendo a população pagar o
preço, confirma o domínio absoluto das finanças que não têm futuro e só pode
gerar novas crises, depois de uma longa, custosa e aparente cura".
Sempre associando a questão
ecológica e a questão social, Francisco constata: "a
mesma lógica que dificulta tomar medidas drásticas para inverter a tendência ao
aquecimento global é a que não permite cumprir com o objetivo de erradicar a
pobreza". Existe uma longa tradição de crítica do capitalismo
liberal, ou dos "excessos " do capital na Igreja Católica. Mas nenhum
Papa foi tão longe nesta condenação como Francisco.
Em 12 de fevereiro, Papa Francisco e o e o Patriarca Kirill, encontraram-se em
nome de suas igrejas quase 1.000 anos após o cisma, em Cuba, e assinaram um
documento que contém este texto: “O nosso encontro fraterno teve lugar
em Cuba, encruzilhada entre Norte e Sul, entre Leste e Oeste. A partir desta
ilha, símbolo das esperanças do “Novo Mundo” e dos acontecimentos dramáticos da
história do século XX, dirigimos a nossa palavra a todos os povos da América
Latina e dos outros continentes”. Um “Novo Mundo” na visão dos dois
líderes religiosos é um mundo socialista?
Francamente, não atribuo tanta
importância a este encontro, que tem mais a ver com a diplomacia das relações
inter-religosas do que com a revolução cubana... O "Novo Mundo" de
que falam não é o "mundo socialista", mas simplesmente o continente
americano, designado há séculos como "Novo Mundo". O conceito de
"socialismo" não faz parte do vocabulário de nenhum do dois líderes
religiosos.
O que a Teologia da Libertação
tem a ensinar para a esquerda mundial, considerando suas diferentes correntes
de pensamento?
Em primeiro lugar, ela nos ensina
que a religião pode ser outra coisa, diferente de simples "ópio do
povo". Aliás, Marx eEngels já haviam previsto
a possibilidade de movimentos religiosos com uma dinâmica anticapitalista. A
esquerda deve tratar com respeito as convicções religiosas e considerar os
militantes cristãos de esquerda como parte essencial do movimento de
emancipação dos oprimidos. A teologia da libertação nos ensina também a
importância da ética no processo de conscientização e a prioridade do trabalho
de base, junto às classes populares, em seus bairros, igrejas, comunidades
rurais e escolas.
Uma unidade política de caráter anticapitalista e anti-imperialista entre as
grandes religiões monoteístas (Cristã, Judaica e Islã) é possível no ponto de
vista de alguns teólogos e mais, fundamental para superar o capitalismo em
escala global. O que pensa sobre isso? É possível superar o capitalismo sem
esta unidade?
Não acredito em unidade
anticapitalista das "grandes religiões monoteístas"... O que pode
existir é uma convergência ecumênica entre correntes progressistas,
anticapitalistas, anti-imperialistas, ecologicamente conscientes, em todas as
religiões, não só as três que menciona. Por exemplo, o budismo, o hinduísmo,
religiões africanas, umbanda, candomblé, religiões indígenas das Américas
etc. Já existem redes progressistas, como a Associação de Teólogos
do Terceiro Mundo, que é ecumênica. Não sei se superar o capitalismo sem
esta convergência é possível ou não, mas ela é uma contribuição importante para
a conscientização de amplas camadas populares.
A igreja católica no Brasil
está alinhada ao Papa Francisco?
Boa parte dos bispos da CNBB está
alinhada com Francisco. Alguns até gostariam que ele fosse mais
longe. Outros, pelo contrário, acham que ele está colocando em perigo a
doutrina da fé e tentam colocar obstáculos para suas propostas. Mas a Igreja
brasileira, apesar de seus limites, em particular no que concerne ao direito
das mulheres sobre seu corpo - divórcio, contracepção, aborto - é uma das mais
progressistas do mundo católico.
Objetivamente, Papa Francisco
tem condições de criar uma unidade internacional de caráter progressista para
enfrentamento ao capitalismo?
Não! Nem objetivamente, nem
subjetivamente. O Papa não se coloca tarefas deste tipo! Para enfrentar o
capitalismo necessitamos da unidade internacional dos trabalhadores, da
juventude, das mulheres, dos indígenas, dos explorados e oprimidos, que são a
esmagadora maioria da humanidade. O Papa poderá, eventualmente, contribuir para
uma tomada de consciência social e ecológica de um amplo setor dos fieis
católicos. Já é muito!
A “Opção Preferencial pelo
Pobre”, conjunto de ideias e ações práticas contrárias à lógica da acumulação e
retenção de capital do atual sistema político e econômico, se colocadas
plenamente em prática resultará em confrontos violentos. Como se posicionará o
Papa neste cenário, em sua avaliação?
A Igreja, tradicionalmente, busca
"evitar" os confrontos violentos. Mas na Conferência de Medellín dos bispos
latino-americanos, em 1968, foi adotada uma resolução importante que reconhece
o direito de insurreição do povo contra tiranias e estruturas opressivas. Como
sabemos, alguns membros do clero levaram sua opção libertária e seu compromisso
com a luta dos pobres até as últimas consequências, participando de movimentos
armados de emancipação.
Foi o caso de Camilo Torres na Colômbia, que resolveu aderir
ao Exército de Libertação Nacional e foi morto em combate em
1966. Poucos anos depois, um grupo de jovens dominicanos deu seu apoio à ALN, dirigida
por Carlos Marighella, no combate contra a ditadura
militar. E nos anos 1970, os irmãos Cardenal e vários outros religiosos
participaram da Frente Nacional de Libertação da Nicarágua. É
difícil prever, no momento atual, que tipo de "confrontos violentos"
se darão contra o sistema capitalista, e menos ainda qual será a posição do Papa
Francisco frente a uma situação deste tipo.
Mudando de assunto, mas para
não deixar escapar a oportunidade, como você enxerga o atual momento político
brasileiro? Que desfecho gostaria que a crise política, econômica, social e
ética tivesse?
Vejo a conjuntura brasileira
atual com muita preocupação. Tenho muitas críticas ao governo de Dilma
Rousseff, fez demasiadas concessões ao capital financeiro, aos bancos,
aos latifundiários e tomou várias medidas opostas aos interesses das classes
populares. Por outro lado, não posso deixar de manifestar um repúdio categórico
à aprovação do processo de impeachment que afastou a presidente, um verdadeiro
golpe de Estado pseudo-legal.
É uma verdadeira farsa tragicômica o que acaba de se passar no Congresso: uma
quadrilha de gângsteres políticos, comprometida com os escândalos de corrupção,
derruba a presidenta democraticamente eleita - um dos poucos políticos não
acusados de corrupção, - por supostas "irregularidades
administrativas". Tudo isso em nome de "Deus", da
"Pátria", da "Família", se escondendo atrás da bandeira
nacional. Sem falar nos adeptos da ditadura militar e dos métodos de tortura do
coronel Ustra. Uma vergonha!
É triste ver como o Partido
dos Trabalhadores, que em sua origem tinha uma grande coerência ética
e política, acabou sendo envolvido no escândalo da Petrobras. Mas ele está
longe de ser o único! É absurdo pretender, como o faz a média conservadora, que
o PT tem o monopólio da corrupção: os principais dirigentes da
oposição, a começar pelo famigerado Eduardo Cunha - e dezenas de outros, do PSDB, do PMDB, do PP etc.
- estão comprometidos com o "assunto".
Minha esperança é que a Frente Brasil Popular, que inclui partidos de
esquerda e movimentos sociais, consiga seus objetivos: ao mesmo tempo impedir o
golpe e obrigar o governo de Dilma a romper com as políticas
neoliberais. Só uma ampla mobilização do povo brasileiro, dos trabalhadores, da
juventude, das mulheres, dos negros, de todos os explorados e oprimidos, poderá
por um fim à tentativa da oligarquia reacionária de tomar o poder e acabar com
a democracia no Brasil.
Minhas simpatias vão ao Partido
do Socialismo e da Liberdade (PSOL), um dos poucos a não estar
comprometido com Lava Jatos e outras ignomínias; ele é, a meu ver, o digno
herdeiro do que de melhor havia no PT das origens, quando
ainda se propunha a acabar com o grande inimigo dos trabalhadores e da
democracia: o sistema capitalista.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/
Terça, 28 de junho de 2016
O papado
de Francisco continua a alvoroçar o catolicismo e a opinião pública
mundiais, num pontificado que, ao lado da promessa de fomento à “opção pelos
pobres”, tem ousado fazer críticas às engrenagens de um capitalismo em crise em
níveis bem acima do esperado. Para discutir o papel daquele que muitos
consideram o maior líder político da atualidade, o Correio da
Cidadania, 21-06-2016, entrevistou o filósofo franco-brasileiro Michael Löwy, estudioso da Teologia
da Libertação.
“Obviamente, ele pretende levar a
sério o compromisso da Igreja com os pobres, suprimir os vínculos dos bancos do
Vaticano com a máfia e tentar reduzir o poder conservador da Cúria Romana. Sua
tentativa de elaborar uma concepção um pouco mais aberta da família e da
sexualidade foi diluída pelo Sínodo dos Cardeais... Há muitas resistências.
Parece que os setores mais reacionários da Igreja têm uma prece especial sobre Bergoglio:
‘Nosso Pai que está no Céu, ilumine-o ou... Elimine-o’”, pontuou.
Ao mesmo tempo em que reconhece o
papel e importância do novo papado, Löwy contrabalança parte
da visão otimista que existe hoje relativamente às posturas de Francisco.
Não por conta da polêmica em relação à ditadura argentina, mas por ponderar que
a crítica ao capitalismo e aos modos de acumulação fazem parte da tradição da
Igreja. O filósofo faz questão, de toda forma, de ressaltar, que "a
esquerda deve tratar com respeito as convicções religiosas e considerar os
militantes cristãos de esquerda como parte essencial do movimento de
emancipação dos oprimidos. A teologia da libertação nos ensina também a
importância da ética no processo de conscientização e a prioridade do trabalho
de base”.
Eis a entrevista.
Quem é Papa Francisco? O que
pretende?
Gostaria, antes de responder sua
pergunta, de homenagear a memória do fundador do Correio da Cidadania,
meu querido amigo e companheiro de lutas Plínio de Arruda Sampaio, um cristão socialista
comprometido com a luta do povo brasileiro por sua emancipação, um adversário
intransigente da ditadura militar, do latifúndio, do imperialismo e do perverso
sistema capitalista. Sua vida foi um exemplo de coerência ética e política, de
dignidade e de coragem.
Jorge
Mario Bergoglio, o Papa Francisco, não era considerado um
homem de esquerda. Seu comportamento durante a ditadura militar argentina é um
exemplo de "pecado por omissão": não apoiou e tampouco se opôs ao
regime. Não é, portanto, surpreendente que tenha sido eleito Pontifex
Maximum pelo mesmo conclave que havia eleito Ratzinger - Bento XVI - pouco tempo antes.
Entretanto, apenas eleito, surpreendeu
por uma sucessão de iniciativas corajosas, a começar pela visita à Lampedusa, para denunciar o tratamento dado
pela Europa aos refugiados (muçulmanos em sua maioria). Em relação à teologia
da libertação, sua atitude é radicalmente distinta da dos dois pontífices
anteriores: Gustavo Gutierrez foi convidado ao Vaticano e o
processo de canonização de Monsenhor Romero, aberto. Se lemos
atentamente as Encíclicas de Bergoglio, percebe-se a influência de
uma corrente importante do catolicismo da Argentina: a teologia da libertação
não-marxista, representada por pensadores como Juan Carlos Scannone.
Obviamente, ele pretende levar a
sério o compromisso da Igreja com os pobres, suprimir os vínculos dos bancos do
Vaticano com a máfia e tentar reduzir o poder conservador da Cúria Romana. Será
que conseguirá? Sua tentativa de elaborar uma concepção um pouco mais aberta da família e da sexualidade foi diluída pelo
Sínodo dos Cardeais... Há muitas resistências. Parece que os setores mais
reacionários da Igreja têm uma prece especial sobre Bergoglio: "Nosso Pai
que está no Céu, ilumine-o ou... Elimine-o".
A encíclica Laudato
Si ataca frontalmente o sistema capitalista. O que isto significa
vindo de um Papa?
Bergoglio não é
marxista e a palavra “capitalismo” não aparece na Encíclica. Mas fica muito
claro que para ele os dramáticos problemas ecológicos de nossa época resultam
das “engrenagens da atual economia globalizada”, engrenagens que constituem um
sistema global, “um sistema de relações comerciais e de propriedade
estruturalmente perverso”.
Quais são, para Francisco, estas características “estruturalmente perversas”?
Quais são, para Francisco, estas características “estruturalmente perversas”?
Antes de tudo, é um sistema no qual predominam “os interesses
ilimitados das empresas” e “uma discutível racionalidade econômica”, uma
racionalidade instrumental que tem por único objetivo aumentar o lucro. Para o
Papa, esta perversidade não é própria de um país ou outro, mas de "um
sistema mundial, onde predominam a especulação e o princípio de maximização do
lucro, e uma busca de rentabilidade financeira que tende a ignorar todo o
contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e o meio ambiente. Assim, se
manifesta a íntima relação entre degradação ambiental e degradação humana e
ética".
A obsessão do crescimento
ilimitado, o consumismo, a tecnocracia, o domínio absoluto da finança e a
divinização do mercado são outras características perversas do sistema. Em sua
lógica destrutiva, tudo se reduz ao mercado e ao “cálculo financeiro de custos
e benefícios”. Mas sabemos que “o meio ambiente é um desses bens que os
mecanismos de mercado não são capazes de defender ou de promover
adequadamente”. O mercado é incapaz de levar em conta valores qualitativos,
éticos, sociais, humanos ou naturais, isto é, “valores que excedem cálculos”.
Sempre associando a questão
ecológica e a questão social, Francisco constata: "a
mesma lógica que dificulta tomar medidas drásticas para inverter a tendência ao
aquecimento global é a que não permite cumprir com o objetivo de erradicar a
pobreza". Existe uma longa tradição de crítica do capitalismo
liberal, ou dos "excessos " do capital na Igreja Católica. Mas nenhum
Papa foi tão longe nesta condenação como Francisco.
Em 12 de fevereiro, Papa Francisco e o e o Patriarca Kirill, encontraram-se em
nome de suas igrejas quase 1.000 anos após o cisma, em Cuba, e assinaram um
documento que contém este texto: “O nosso encontro fraterno teve lugar
em Cuba, encruzilhada entre Norte e Sul, entre Leste e Oeste. A partir desta
ilha, símbolo das esperanças do “Novo Mundo” e dos acontecimentos dramáticos da
história do século XX, dirigimos a nossa palavra a todos os povos da América
Latina e dos outros continentes”. Um “Novo Mundo” na visão dos dois
líderes religiosos é um mundo socialista?
Francamente, não atribuo tanta
importância a este encontro, que tem mais a ver com a diplomacia das relações
inter-religosas do que com a revolução cubana... O "Novo Mundo" de
que falam não é o "mundo socialista", mas simplesmente o continente
americano, designado há séculos como "Novo Mundo". O conceito de
"socialismo" não faz parte do vocabulário de nenhum do dois líderes
religiosos.
O que a Teologia da Libertação
tem a ensinar para a esquerda mundial, considerando suas diferentes correntes
de pensamento?
Em primeiro lugar, ela nos ensina
que a religião pode ser outra coisa, diferente de simples "ópio do
povo". Aliás, Marx eEngels já haviam previsto
a possibilidade de movimentos religiosos com uma dinâmica anticapitalista. A
esquerda deve tratar com respeito as convicções religiosas e considerar os
militantes cristãos de esquerda como parte essencial do movimento de
emancipação dos oprimidos. A teologia da libertação nos ensina também a
importância da ética no processo de conscientização e a prioridade do trabalho
de base, junto às classes populares, em seus bairros, igrejas, comunidades
rurais e escolas.
Uma unidade política de caráter anticapitalista e anti-imperialista entre as grandes religiões monoteístas (Cristã, Judaica e Islã) é possível no ponto de vista de alguns teólogos e mais, fundamental para superar o capitalismo em escala global. O que pensa sobre isso? É possível superar o capitalismo sem esta unidade?
Uma unidade política de caráter anticapitalista e anti-imperialista entre as grandes religiões monoteístas (Cristã, Judaica e Islã) é possível no ponto de vista de alguns teólogos e mais, fundamental para superar o capitalismo em escala global. O que pensa sobre isso? É possível superar o capitalismo sem esta unidade?
Não acredito em unidade
anticapitalista das "grandes religiões monoteístas"... O que pode
existir é uma convergência ecumênica entre correntes progressistas,
anticapitalistas, anti-imperialistas, ecologicamente conscientes, em todas as
religiões, não só as três que menciona. Por exemplo, o budismo, o hinduísmo,
religiões africanas, umbanda, candomblé, religiões indígenas das Américas
etc. Já existem redes progressistas, como a Associação de Teólogos
do Terceiro Mundo, que é ecumênica. Não sei se superar o capitalismo sem
esta convergência é possível ou não, mas ela é uma contribuição importante para
a conscientização de amplas camadas populares.
A igreja católica no Brasil
está alinhada ao Papa Francisco?
Boa parte dos bispos da CNBB está
alinhada com Francisco. Alguns até gostariam que ele fosse mais
longe. Outros, pelo contrário, acham que ele está colocando em perigo a
doutrina da fé e tentam colocar obstáculos para suas propostas. Mas a Igreja
brasileira, apesar de seus limites, em particular no que concerne ao direito
das mulheres sobre seu corpo - divórcio, contracepção, aborto - é uma das mais
progressistas do mundo católico.
Objetivamente, Papa Francisco
tem condições de criar uma unidade internacional de caráter progressista para
enfrentamento ao capitalismo?
Não! Nem objetivamente, nem
subjetivamente. O Papa não se coloca tarefas deste tipo! Para enfrentar o
capitalismo necessitamos da unidade internacional dos trabalhadores, da
juventude, das mulheres, dos indígenas, dos explorados e oprimidos, que são a
esmagadora maioria da humanidade. O Papa poderá, eventualmente, contribuir para
uma tomada de consciência social e ecológica de um amplo setor dos fieis
católicos. Já é muito!
A “Opção Preferencial pelo
Pobre”, conjunto de ideias e ações práticas contrárias à lógica da acumulação e
retenção de capital do atual sistema político e econômico, se colocadas
plenamente em prática resultará em confrontos violentos. Como se posicionará o
Papa neste cenário, em sua avaliação?
A Igreja, tradicionalmente, busca
"evitar" os confrontos violentos. Mas na Conferência de Medellín dos bispos
latino-americanos, em 1968, foi adotada uma resolução importante que reconhece
o direito de insurreição do povo contra tiranias e estruturas opressivas. Como
sabemos, alguns membros do clero levaram sua opção libertária e seu compromisso
com a luta dos pobres até as últimas consequências, participando de movimentos
armados de emancipação.
Foi o caso de Camilo Torres na Colômbia, que resolveu aderir
ao Exército de Libertação Nacional e foi morto em combate em
1966. Poucos anos depois, um grupo de jovens dominicanos deu seu apoio à ALN, dirigida
por Carlos Marighella, no combate contra a ditadura
militar. E nos anos 1970, os irmãos Cardenal e vários outros religiosos
participaram da Frente Nacional de Libertação da Nicarágua. É
difícil prever, no momento atual, que tipo de "confrontos violentos"
se darão contra o sistema capitalista, e menos ainda qual será a posição do Papa
Francisco frente a uma situação deste tipo.
Mudando de assunto, mas para
não deixar escapar a oportunidade, como você enxerga o atual momento político
brasileiro? Que desfecho gostaria que a crise política, econômica, social e
ética tivesse?
Vejo a conjuntura brasileira
atual com muita preocupação. Tenho muitas críticas ao governo de Dilma
Rousseff, fez demasiadas concessões ao capital financeiro, aos bancos,
aos latifundiários e tomou várias medidas opostas aos interesses das classes
populares. Por outro lado, não posso deixar de manifestar um repúdio categórico
à aprovação do processo de impeachment que afastou a presidente, um verdadeiro
golpe de Estado pseudo-legal.
É uma verdadeira farsa tragicômica o que acaba de se passar no Congresso: uma quadrilha de gângsteres políticos, comprometida com os escândalos de corrupção, derruba a presidenta democraticamente eleita - um dos poucos políticos não acusados de corrupção, - por supostas "irregularidades administrativas". Tudo isso em nome de "Deus", da "Pátria", da "Família", se escondendo atrás da bandeira nacional. Sem falar nos adeptos da ditadura militar e dos métodos de tortura do coronel Ustra. Uma vergonha!
É uma verdadeira farsa tragicômica o que acaba de se passar no Congresso: uma quadrilha de gângsteres políticos, comprometida com os escândalos de corrupção, derruba a presidenta democraticamente eleita - um dos poucos políticos não acusados de corrupção, - por supostas "irregularidades administrativas". Tudo isso em nome de "Deus", da "Pátria", da "Família", se escondendo atrás da bandeira nacional. Sem falar nos adeptos da ditadura militar e dos métodos de tortura do coronel Ustra. Uma vergonha!
É triste ver como o Partido
dos Trabalhadores, que em sua origem tinha uma grande coerência ética
e política, acabou sendo envolvido no escândalo da Petrobras. Mas ele está
longe de ser o único! É absurdo pretender, como o faz a média conservadora, que
o PT tem o monopólio da corrupção: os principais dirigentes da
oposição, a começar pelo famigerado Eduardo Cunha - e dezenas de outros, do PSDB, do PMDB, do PP etc.
- estão comprometidos com o "assunto".
Minha esperança é que a Frente Brasil Popular, que inclui partidos de
esquerda e movimentos sociais, consiga seus objetivos: ao mesmo tempo impedir o
golpe e obrigar o governo de Dilma a romper com as políticas
neoliberais. Só uma ampla mobilização do povo brasileiro, dos trabalhadores, da
juventude, das mulheres, dos negros, de todos os explorados e oprimidos, poderá
por um fim à tentativa da oligarquia reacionária de tomar o poder e acabar com
a democracia no Brasil.
Minhas simpatias vão ao Partido
do Socialismo e da Liberdade (PSOL), um dos poucos a não estar
comprometido com Lava Jatos e outras ignomínias; ele é, a meu ver, o digno
herdeiro do que de melhor havia no PT das origens, quando
ainda se propunha a acabar com o grande inimigo dos trabalhadores e da
democracia: o sistema capitalista.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/
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